“Leve seu cérebro pra passear”

“Leve seu cérebro pra passear”

Devidamente entre aspas, respeitando assim a propriedade intelectual deste slogan, que serve a uma ótima iniciativa cultural denominada Catraca Livre.

Dois segundos depois de ter visto o slogan, no último vagão do metro, cheguei em casa e falei para o meu cérebro: vamos passear! Primeiro foi necessário encontrá-lo, uma ação costumeira e com poucos obstáculos, já que poucos são os metros quadrados de minha morada, onde ele poderia estar escondido. Ranzinza e contrafeito, saiu de seu tugúrio e colocou-se sobre a mesa, para que este colóquio tivesse ensejo. Depois da oitava vez de lhe convidar com um frenesi infantil, ele replica, bocejando:

- Até onde eu sei, estamos de relações cortadas, e tudo o que lhe pedi foi para me avisar dia e hora do seu desencarne, para que eu possa me preparar. Clamo que isso não demore além desta presente eternidade, e rogo-lhe, encarecido, para não me dirigir mais a palavra.

Alguém está de mau humor por aqui.

- Vamos lá, meu chapa, ano novo, vida nova, renovação das esperanças, apagão nos ressentimentos, novos horizontes nos aguardam, estou te convidando...

- Por acaso tu te lembras, infame criatura, dos lugares que me levaste para passear?

- Eu te levava? Sempre achei que fosse o contrário...Depois, seja lá a que te referes, faz muito tempo, e não foi tão ruim assim.

- Tão ruim... porque não foi com você, foi comigo. Tão ruim, é como se referem à situação dos hansenianos. Precisas começar a se colocar no lugar do outro, e aprimorar o teu, arghhh, linguajar.

- Ué, não estou fazendo isso, te convidando para passear? E você aí com rancores e pedradas...vamos, deixa disso, ano novo....

- Novos rancores virão...

- Talvez, mas enquanto eles não chegam, o que posso fazer para me redimir, para, hummm, satisfazer-lhe?

- Isso é sério, ou é piada?

- Tão sério como a Bíblia.

- Então vamos lá – exultou ele – mãos à obra! Vamos curar o câncer, a leucemia e a idiotia. Vamos alimentar os necessitados, refazer os cálculos da economia, e arquitetar algo inédito para espalhar a alegria. Para todos, incondicionalmente. E depois, tu me levas para assistir de novo o show da banda Dr. Cipó, excelentes músicos, que sei lá porque saímos no meio da apresentação.

- Eu estava com dor de barriga....

- Pois é esse o seu problema. Sempre o estômago. Sempre satisfazendo bestialidades, ao invés de projetar humanidades. E passaste mal por causa do bolo “Qualitinha”.

- Ôaaa, calma lá, o referido bolo, além de acalmar os ânimos na baixa madrugada, custa um real, sendo quase do tamanho de um Pullman.

- E naquele dia comeste quantos? E por um real, daquele tamanho, tu achas que é feito de que?

- Ok, ok, vou fingir que esta conversa não aconteceu, pois começas a me dar nos nervos, e agora, em êxtase me concentrando, voltarei aos bons fluídos do metro, e lhe perguntarei pela última vez sobre o passeio.

Depois de um longo e incômodo silêncio, ele disse:

- Está certo. Vamos passear. Quero um “Rochinha”.

- O quê!! Um o quê?

- Você não é surdo. Quero um “Rochinha”.

- Mas...onde vamos arranjar um “Rochinha” à essa hora, e por essas bandas? E desde quando tens paladar?

- Sempre tive. Mas como só lidas com quinquilharias, resignei-me e calei-me. Te lembras do último “Rochinha”?

Silêncio. Fui para a janela não ver os carros trafegando lá embaixo.

Depois passei por ele, sem ao menos dar boa noite, e fui dormir.

- Ele dormiu – sussurrou o cérebro, na penumbra da sala – Oxalá durma até 3009. Só tenho sossego quando ele dorme. Podia ter dormido com a TV ligada, hoje vai passar “Sol Nascente”. Título apropriado para a madrugada porvir. Bom sujeito, mas terrivelmente chato. Sem contar suas aspirações, bolos de terceira categoria, miojo sabor pizza, qual, sou um ser superior, condenado a viver nesse corpo, que mais parece uma pêra, e, quando lhe peço um único favor, diz que não sabe do que estou falando e vai dormir.

Cada um com a sua cruz. Boa noite à todos. Vou contar as estrelas, hoje são 3 bilhões e 755 mil, só nesse quadrante. A propósito, “Rochinha” é um picolé delicioso, disponível em raríssimos estabelecimentos, existe nos sabores tangerina e groselha.

Prefiro o de tangerina.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 09/01/2009
Reeditado em 23/07/2013
Código do texto: T1375624
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