UM FANTOCHE NUM CAVALO DE PAU
Avistei a triste figura do maltrapilho cavaleiro montado em seu pangaré, a trotar sob o sol escaldante numa tarde morta pela solidão em derredor, quando viajava pelos caminhos por demais ensolarados do RN e passava por uma cidadezinha qualquer de beira de estrada. Lá ia ele todo apático em sua tristura desencantada e ensimesmada, o ar sorumbático de quem acabou de saber a pior das notícias. Chamou-me a atenção aquela criatura melancólica por sua impassibilidade e indiferença, seu jeito acabrunhado, seu ar de distanciamento e abandono, sua expressa tristeza indisfarçável. No mesmo instante infinitesimal do piscar d'olhos, então, veio-me à lembrança a tosca e burlesca figura criada por Miguel de Cervantes, mas logo rechacei tal pensamento porque Dom Quixote de La Mancha lutava contra moinhos gigantes, e nesse homem de aparência derrotada não percebi inclinação às batalhas nem demonstração de apego aos conflitos resolvíveis a fio de espada. Pelo contrário, ele transpirava calmaria, sossego e pacifismo. Algo ainda mais complexo que isso, vi-me propenso a refletir, pois se o fracasso tivesse aparência com certeza teria aquele aspecto soturno.
Acompanhei-lhe por instante o trajeto e vi-o seguir, naquele calor abrasante e infernal tão característico do abandonado e sofrido Nordeste, sempre à frente como se em busca de um nada qualquer, deixando que o pobre cavalo buscasse o próprio destino ou se fosse a esmo porque não tivesse razão para determinar objetivos.Talvez estivesse indo a caminho da própria incapacidade de sorrir e ser feliz, pois bem assim estava expresso nos seus ombros caídos e a cabeça sobreposta sobre o tórax, as patas do cavalo pisoteando o chão duro, quente e seco do pobre espaço dividido com os demais cidadãos do lugar que experimentam a mesma sensação do deprimente cotidiano num lugarzinho esquecido e fantasmagórico. Será que ia ou vinha de algum rincão ao léu? Provavelmente apenas perambulava há dias sobre o lombo do animal à espera do último suspiro.
É certo e indubitável, claro, não pude ver-lhe as faces senão através do quase imperceptível perfil, posto que ele ia cabisbaixo, mirando o dorso ossudo do animal e perdido nalgum recanto do seu intrincado eu desvanecido. Será que chorava por alguma razão misteriosa? Óbvio que não, homens daquela espécie certamente não choram, creio. Olhos fechados a refletir, quem sabe? Imagino que cavalgava pensativo sem devanear em nenhum ponto específico, somente se sentindo aprisionado nos desvãos dos porões íntimos e metido a casmurro até mesmo sem ter noção disso. Mas, com certeza, estou seguro de que no rosto daquele homem haveria faces absolutamente covadas, esquálidas, quase desprovidas de carne na quantidade necessária para prover-lhe um rosto próximo do saudável. Naquele seu jeito de coitadinho, de quem tiraram os últimos resquícios da dignidade, o pobre cavaleiro nem de longe lembrava o sertanejo descrito por Euclides da Cunha, sendo ele antes de mais nada um borrão de fraqueza, um pingo no i do impaludismo.
E assim ele enveredava por seu desrumo à procura do vazio, pejado de inquestionável angústia a pressionar-lhe o peito cansado, tombado ao já insuportável peso da vida ressentida e da absoluta falta de sonhos e objetivos palpáveis. Exagero? Não me alerta a consciência no tocante a isso nem salta-me o coração à boca ante tal assertiva, pois não se me exaltava à vista o seu depauperado aspecto de morto-vivo a existir tão-somente pelo instinto? Sim, isso, embora, é provável, aguardando a terminal hora para ir-se desse mundão tomado de agruras e inesgotáveis tormentas cotidianas. Assim me pareceu ele por todos os instantes de minha observação passageira, e nitidamente a criatura como que pretendia fazer questão de demonstrar isso com todas as letras e imagens.
Quando me fui sem tomar ciência de mais nada quanto àquele indivíduo semi-morto sobre um pangaré franzino e ruinzinho de patas, o sol, à guisa de piscar-me o olho quando lhe passavam nuvens sob seu brilho intenso, acirrou-me a imaginação a ponto de ir esboçando, enquanto corria veloz e comia estrada, um desbotado retrato do nosso quixotesco ser nordestino espalhando, aqui e ali, o tristonho arremedo de um cavaleiro desfigurado que, talvez, outrora, tenha sido vaqueiro nas securas garranchudas de algum sítio minchuruca próximo à cidadezinha de beira de estrada jogada à indiferença de quem por ali é obrigado a passar pelas circunstâncias.
Tenho por mim, asseguro, que lágrimas inesperadas desceram-me pelo rosto e salgaram as comissuras de meus lábios ressecados à culpa do espantoso calor reinante nos quadrantes do caminho.
Avistei a triste figura do maltrapilho cavaleiro montado em seu pangaré, a trotar sob o sol escaldante numa tarde morta pela solidão em derredor, quando viajava pelos caminhos por demais ensolarados do RN e passava por uma cidadezinha qualquer de beira de estrada. Lá ia ele todo apático em sua tristura desencantada e ensimesmada, o ar sorumbático de quem acabou de saber a pior das notícias. Chamou-me a atenção aquela criatura melancólica por sua impassibilidade e indiferença, seu jeito acabrunhado, seu ar de distanciamento e abandono, sua expressa tristeza indisfarçável. No mesmo instante infinitesimal do piscar d'olhos, então, veio-me à lembrança a tosca e burlesca figura criada por Miguel de Cervantes, mas logo rechacei tal pensamento porque Dom Quixote de La Mancha lutava contra moinhos gigantes, e nesse homem de aparência derrotada não percebi inclinação às batalhas nem demonstração de apego aos conflitos resolvíveis a fio de espada. Pelo contrário, ele transpirava calmaria, sossego e pacifismo. Algo ainda mais complexo que isso, vi-me propenso a refletir, pois se o fracasso tivesse aparência com certeza teria aquele aspecto soturno.
Acompanhei-lhe por instante o trajeto e vi-o seguir, naquele calor abrasante e infernal tão característico do abandonado e sofrido Nordeste, sempre à frente como se em busca de um nada qualquer, deixando que o pobre cavalo buscasse o próprio destino ou se fosse a esmo porque não tivesse razão para determinar objetivos.Talvez estivesse indo a caminho da própria incapacidade de sorrir e ser feliz, pois bem assim estava expresso nos seus ombros caídos e a cabeça sobreposta sobre o tórax, as patas do cavalo pisoteando o chão duro, quente e seco do pobre espaço dividido com os demais cidadãos do lugar que experimentam a mesma sensação do deprimente cotidiano num lugarzinho esquecido e fantasmagórico. Será que ia ou vinha de algum rincão ao léu? Provavelmente apenas perambulava há dias sobre o lombo do animal à espera do último suspiro.
É certo e indubitável, claro, não pude ver-lhe as faces senão através do quase imperceptível perfil, posto que ele ia cabisbaixo, mirando o dorso ossudo do animal e perdido nalgum recanto do seu intrincado eu desvanecido. Será que chorava por alguma razão misteriosa? Óbvio que não, homens daquela espécie certamente não choram, creio. Olhos fechados a refletir, quem sabe? Imagino que cavalgava pensativo sem devanear em nenhum ponto específico, somente se sentindo aprisionado nos desvãos dos porões íntimos e metido a casmurro até mesmo sem ter noção disso. Mas, com certeza, estou seguro de que no rosto daquele homem haveria faces absolutamente covadas, esquálidas, quase desprovidas de carne na quantidade necessária para prover-lhe um rosto próximo do saudável. Naquele seu jeito de coitadinho, de quem tiraram os últimos resquícios da dignidade, o pobre cavaleiro nem de longe lembrava o sertanejo descrito por Euclides da Cunha, sendo ele antes de mais nada um borrão de fraqueza, um pingo no i do impaludismo.
E assim ele enveredava por seu desrumo à procura do vazio, pejado de inquestionável angústia a pressionar-lhe o peito cansado, tombado ao já insuportável peso da vida ressentida e da absoluta falta de sonhos e objetivos palpáveis. Exagero? Não me alerta a consciência no tocante a isso nem salta-me o coração à boca ante tal assertiva, pois não se me exaltava à vista o seu depauperado aspecto de morto-vivo a existir tão-somente pelo instinto? Sim, isso, embora, é provável, aguardando a terminal hora para ir-se desse mundão tomado de agruras e inesgotáveis tormentas cotidianas. Assim me pareceu ele por todos os instantes de minha observação passageira, e nitidamente a criatura como que pretendia fazer questão de demonstrar isso com todas as letras e imagens.
Quando me fui sem tomar ciência de mais nada quanto àquele indivíduo semi-morto sobre um pangaré franzino e ruinzinho de patas, o sol, à guisa de piscar-me o olho quando lhe passavam nuvens sob seu brilho intenso, acirrou-me a imaginação a ponto de ir esboçando, enquanto corria veloz e comia estrada, um desbotado retrato do nosso quixotesco ser nordestino espalhando, aqui e ali, o tristonho arremedo de um cavaleiro desfigurado que, talvez, outrora, tenha sido vaqueiro nas securas garranchudas de algum sítio minchuruca próximo à cidadezinha de beira de estrada jogada à indiferença de quem por ali é obrigado a passar pelas circunstâncias.
Tenho por mim, asseguro, que lágrimas inesperadas desceram-me pelo rosto e salgaram as comissuras de meus lábios ressecados à culpa do espantoso calor reinante nos quadrantes do caminho.