O povo em que nos tornamos

O POVO EM QUE NOS TORNAMOS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 07.01.2009)

Já morreu gente em 2009. Pensando bem, não é de admirar essa ocorrência de mortes no ano que avança rápido: uma semana em 52, sete dias em 365, perfazem 2% do total. Ou seja, só faltam agora 98% do tempo para fazermos solenes declarações de boas intenções para 2010.

Mas tratemos antes de 2009, pois há certa probabilidade de não completarmos todos esse percurso residual de 98% - afinal, é quase um ano daqui até lá.

Parece que o ano mal começou e já tem gente morrendo por aí. Já nem falo de palestinos, centenas deles caídos, encurralados em um chão do qual não podem escapar enquanto são bombardeados por ar e por terra. Falo de gente morrendo cá deste lado do mundo.

Gente morrendo no Brasil, no Estado, na Ilha. Claro, isso acontece todos os dias, não tem cabimento agora qualquer espanto. Não há surpresa alguma nisso de morrer gente de forma violenta a toda hora. Já estamos acostumados com isso: assim é a vida, cheia de mortes por todos os lados. Que fazer, não é mesmo?

Por exemplo: morreu um sujeito outro dia no Norte da Ilha, em Canasvieiras. Foi morto, na verdade. Baleado. Como se estivesse confinado em uma terra de onde não logrou escapar. Coisas de trânsito, pra variar.

Sim, pois quando as pessoas não se matam pelo trânsito, se matam por futebol, drogas ou amor. Por ciúme e despeito, melhor dizendo. E também por dinheiro: por muita ou até por bem pouca grana. É a vida, não é mesmo?

O de Canasvieiras: caminhava com amigos no meio do povo quando de um Astra bordô de Foz do Iguaçu saltou um homem que deu um tiro no braço do rapaz de 22 anos. O projétil atingiu o tórax e prostrou o sujeito no chão. Mortinho da silva porque teria tocado de raspão, com a mão, a lataria do veículo.

Esse o povo em que nos estamos tornando: banalizando a vida e a morte como criminosos e como espectadores. Sem revoltas nem maiores indignações - porque amanhã seremos servidos de novas mortes.

De sobrenome Hanser e cidadania austríaca, o sujeito trabalhava há três anos como pedreiro na Áustria. De férias em casa, Rafael Luiz visitava a família na Vargem Grande, ali pertinho de Canasvieiras, onde festejava a passagem de ano. Planejava voltar ao Brasil com dinheiro para cursar Biologia. Morreu às 4h30min do dia 1o.

Agora que tem nome, história, sonho e foto na televisão, as pessoas ficam chocadas com a sua morte.

Mas a vida não é assim mesmo?

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 07/01/2009
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