O “camerlengo” Murta
Algo muito inusitado aconteceu no enterro de um ex-prefeito de Brasília de Minas. Mas, para melhor entender a riqueza do acontecido, precisamos fazer uma breve digressão pelos meandros da hierarquia do Vaticano e da sucessão papal.
Inicialmente, necessitamos falar do camerlengo. Para quem não é enfronhado na estrutura hierárquica do Vaticano, camerlengo é o cardeal encarregado de administrar e cuidar dos bens e dos direitos da Santa Sé, durante a chamada Sede Vacante, isto é, entre a morte de um papa e a posse do novo sumo pontífice. Trata-se, em outras palavras, do substituto temporário do papa, naquele interregno.
Nesse curto período de substituição – em torno de nove dias -, além de ser o administrador interino da Igreja, o camerlengo tem como função atestar a morte do papa, seguindo ritualística bem interessante. No caso do Papa João Paulo 2º., o camerlengo era o cardeal espanhol Eduardo Martínez Somalo.
Para a confirmação da morte do papa, o camerlengo não faz uso de estetoscópio ou de qualquer outro instrumental médico, pois esse é um procedimento laico. O único instrumento utilizado por esse alto representante do clero é um bizarro martelo de prata.
Assim, para atestar a morte de João Paulo 2º, o camerlengo Somalo postou-se junto ao corpo inerte e chamou o papa três vezes por seu nome de batismo – Karol Joseph Wojtyla. Depois, bateu ligeiramente na testa do suposto defunto com o martelo de prata. Na ausência de reação, ele confirmou: “O papa está morto”. Somente depois, iniciaram-se os procedimentos da escolha do sucessor, em conclave do sacro colégio, até que surgiu a fumaça branca, na chaminé da Capela Sistina, sinalizando que “habemus papam”.
Pois bem. Em Brasília de Minas, no final dos anos 80, faleceu o advogado e ex-prefeito Cassiano Alves de Oliveira. Solteiro e com quase 70 anos, ainda esperava-se que ele retornasse ao comando do município, porquanto fora um dos principais benfeitores daquela cidade, tendo-a administrado ao longo de três mandatos. Conquistou a confiança, a simpatia e o reconhecimento dos munícipes, em decorrência das obras ali executadas e da correção de sua conduta.
Por isso mesmo, a morte do Dr. Cassiano – como era conhecido – chocou a cidade. A notícia correu rapidamente e o povo tomou de assalto ruas e praças, lamentando o acontecido.
Iniciam-se os procedimentos para os funerais, com a confecção de listas de pessoas que não poderiam deixar de serem convidadas para as exéquias. Nesse rol, o primeiro nome era do padre Adherbal Murta, que fora pároco da Matriz de Santana, por longos anos, e amigo fraternal do Dr. Cassiano, que regulava sua idade.
Marcou-se o enterro para o dia seguinte, à tarde.
No dia, quase na hora da cerimônia fúnebre, mulheres rezam o terço e entoam canções de despedida. O povo, em fila, passa para a última reverência ao ex-prefeito. Aguardam apenas a chegada do padre Murta, para a missa de corpo presente e o enterro.
Começa a escurecer e o jeito foi iniciar a missa sem a presença do padre Murta, que atrasara na viagem. Terminada a missa, o padre Murta ainda não havia chegado. Deliberam conduzir o féretro para o pequeno cemitério, já abarrotado de amigos, parentes e autoridades de vários municípios da região. O caixão é aberto para discursos à beira do túmulo. E o padre Murta não chega. Fecham o caixão e, somente neste momento, ouve-se um burburinho. O povo dá passagem. Já escuro, não se enxerga bem quem chegava. Mas era o padre Murta que adentrava o campo santo, empoeirado, mas ainda a tempo de prestar sua última homenagem ao Dr. Cassiano.
Muita gente chora de emoção ao ver o velho padre. Ele se aproxima do caixão já fechado e, inesperadamente, dá três batidas na madeira e chama o amigo pelo nome:
- Cassiano!...
Espera um pouco. Repete as batidas e novamente o chama:
- Cassiano!...
Ao final de nova pausa – sem que as pessoas nada entendessem e com algumas até achando que ele não passava bem -, padre Murta dá os últimos três toques na madeira, chama-o novamente pelo nome e, como não é atendido, sentencia, qual um camerlengo:
- Está morto! Podem enterrá-lo, pois se vivo estivesse já teria me atendido, como sempre o fizera com os amigos, ao longo de toda a sua vida.
O povo aplaudiu efusivamente. Até hoje, não se sabe ao certo se as palmas foram para o corpo que descia à sepultura, ou para aquela insólita despedida do padre Murta...