Lembro-me ainda, como se fosse ontem: mês de maio; mês mariano para a legião católica e, minha família e eu fazíamos parte dessa legião.
Nesse mês, uma imagem peregrina de Nossa Senhora percorria as casas dos fiéis, permanecendo lá por alguns dias.
No dia da santa ir embora, ou melhor, no dia da santa imagem ir peregrinar na casa de outro, o anfitrião da vez, recebia amigos de igreja, parentes e vizinhos para, juntos rezarem e tecerem pedidos e louvores à Mãe de Deus.
Pois bem, certa ocasião a imagem peregrina ficou hospedada em nossa casa e eu, como uma boa anfitriã, sempre que minha mãe saia, pegava Nossa Senhora e, na melhor das intenções, dava-lhe um belo banho na bica da cozinha. Nossa Senhora era simples, não ia fazer questão de chuveiro , muito menos de banheira(até porque, na época dela não tinha nada disso!). Era um banho gostoso, de bica mesmo, para aliviar a santa do calorão caxiense! Depois, eu a enxugava com toalhinha de mão e passava um pouquinho de perfume(roubado de minha mãe), afinal toda mulher gosta de uma água-de-colônia!
Ao fim do ritual do banho, colocava Nossa Senhora um pouco deitada, “coitada-pensava eu-de pé ali naquela estante dia e noite e ainda com as mãos postas! Isso não é venerar, é castigar a pobre!” Então, de maneira carinhosa, eu deitava Nossa Senhora em um travesseiro e a cobria com um lençol bem fininho. Ali ela podia descansar até que eu ouvisse minha mãe chegando (e era impossível não notar a chegada da mamãe, mesmo para aquele que estivesse em coma!). Sempre sorrindo, falando alto e gesticulando… Ai, era hora de acordar a pobre da santinha de repente, no susto mesmo (se bem que ela nunca reclamou e eu a admirava por isso: “é uma santa… se fosse comigo…” pensava). Rapidamente eu a colocava de volta na estante e pedia que ela fizesse aquela cara de cansada de novo, pra mamãe não desconfiar que eu havia aliviado o lado dela. Com uma piscadela de olho (ou melhor, de olhos, pois não sabia piscar com um só), me despedia sussurrando um “até amanhã “.
Na véspera da santinha ir embora, algo tenebroso aconteceu: na hora de enxugá-la, fui, com a mais pura das intenções, tentar secar-lhe os cabelos, por baixo do véu, pois o tempo havia mudado e não era bom que ficasse com os cabelos molhados. Sem me dar conta da impossibilidade óbvia, continuei me esforçando até que… a cabeça desprendeu-se do corpo. Desesperada, eu gritei: “Nossa Senhora! Decapitei Nossa Senhora!”
O pranto foi agudo e sofrido. Entre lágrimas e soluços pedia desculpas a ela enquanto tentava recolocar a cabeça e, quando pensava em minha mãe querida, sabia que logo, logo, ere eu, quem ia ficar sem cabeça, pois quando minha mãe visse aquela atrocidade , iria, com certeza, perder a cabeça também! Seríamos três “descabeçadas “,mas, doer mesmo, só ia doer em mim!…
Tive a brilhante idéia de usar cola branca para recolocar a cabeça, mas não deu certo e o pior, lambuzei toda a roupa e o manto de Nossa Senhora…tive de lhe dar outro banho rápido, mesmo assim, seu manto azul celeste ainda ficou pegajoso. Mas o importante era colar a cabeça. Montei cabeça sobre corpo, direitinho e passei durex em volta. Achei que podia dar certo, mas ficou um horror e quando fui desfazer o horror, junto com o durex veio quase todo azul celeste do manto de Nossa Senhora! Eu. Irremediavelmente eu, era a culpada por todo aquele sofrimento da santa, como se não bastasse tudo o que ela já havia sofrido nessa vida… A culpa tomou então, conta de mim. Me sentia péssima, verdadeiramente algoz , e logo de Nossa Senhora, que não merecia aquilo -”se ainda fosse a cabeça do professor de matemática…mas Nossa Senhora? Como pude?”- me cobrava sem cessar. Eu merecia a pena de morte, ou melhor, eu merecia a morte sem pena!
Decidi, então, com a ajuda da própria vítima, recolocá-la, sem cabeça mesmo, na estante e esperar a chegada de minha mãe que, perdendo sua cabeça, deceparia a minha mas, pelo menos seria decepada com a cabeça de Nossa Senhora na mão e dignidade no peito.
Quando minha mãe chegou, me viu estatelada na cadeira , em frente à porta e foi correndo averiguar se eu estava bem: a vizinha do apartamento ao lado , me ouviu chorar e decidiu ligar para o trabalho de minha mãe, uma vez que, bateu na nossa porta e eu não respondi (na verdade eu nem ouvi). Balbuciando, contei à minha mãe o motivo de meu choro desesperado, mostrando-lhe a cabeça de Nossa Senhora em minhas mãos assassinas…
O medo que assombrava o coração de minha mãe, de que algo grave houvesse acontecido comigo, foi mandado dos céus, porque ela me disse com voz mansa, entre abraços e beijos: “Filhinha, é só uma imagem…muito bonita, mas apenas uma imagem. A mamãe vai dar um jeito de colar e se não conseguir, compramos outra. E Nossa Senhora vai continuar te amando pois sua intenção foi boa e Deus julga de acordo com a intenção! “
Aquelas palavras cairam como um bálsamo sobre o meu coraçãozinho de apenas nove anos. Aprendi que o amor de mãe é sempre maior que a raiva; que Nossa Senhora, mesmo decapitada, também é mãe, e, por isso não deixaria de me amar; aprendi que Deus julga conforme a intenção do coração e sabe o que mais? Senti tanta alegria naquele momento que descobri que a alegria cura a culpa! E, tornei-me devota de Nossa Senhora da Cabeça, como não podia deixar de ser !
Nesse mês, uma imagem peregrina de Nossa Senhora percorria as casas dos fiéis, permanecendo lá por alguns dias.
No dia da santa ir embora, ou melhor, no dia da santa imagem ir peregrinar na casa de outro, o anfitrião da vez, recebia amigos de igreja, parentes e vizinhos para, juntos rezarem e tecerem pedidos e louvores à Mãe de Deus.
Pois bem, certa ocasião a imagem peregrina ficou hospedada em nossa casa e eu, como uma boa anfitriã, sempre que minha mãe saia, pegava Nossa Senhora e, na melhor das intenções, dava-lhe um belo banho na bica da cozinha. Nossa Senhora era simples, não ia fazer questão de chuveiro , muito menos de banheira(até porque, na época dela não tinha nada disso!). Era um banho gostoso, de bica mesmo, para aliviar a santa do calorão caxiense! Depois, eu a enxugava com toalhinha de mão e passava um pouquinho de perfume(roubado de minha mãe), afinal toda mulher gosta de uma água-de-colônia!
Ao fim do ritual do banho, colocava Nossa Senhora um pouco deitada, “coitada-pensava eu-de pé ali naquela estante dia e noite e ainda com as mãos postas! Isso não é venerar, é castigar a pobre!” Então, de maneira carinhosa, eu deitava Nossa Senhora em um travesseiro e a cobria com um lençol bem fininho. Ali ela podia descansar até que eu ouvisse minha mãe chegando (e era impossível não notar a chegada da mamãe, mesmo para aquele que estivesse em coma!). Sempre sorrindo, falando alto e gesticulando… Ai, era hora de acordar a pobre da santinha de repente, no susto mesmo (se bem que ela nunca reclamou e eu a admirava por isso: “é uma santa… se fosse comigo…” pensava). Rapidamente eu a colocava de volta na estante e pedia que ela fizesse aquela cara de cansada de novo, pra mamãe não desconfiar que eu havia aliviado o lado dela. Com uma piscadela de olho (ou melhor, de olhos, pois não sabia piscar com um só), me despedia sussurrando um “até amanhã “.
Na véspera da santinha ir embora, algo tenebroso aconteceu: na hora de enxugá-la, fui, com a mais pura das intenções, tentar secar-lhe os cabelos, por baixo do véu, pois o tempo havia mudado e não era bom que ficasse com os cabelos molhados. Sem me dar conta da impossibilidade óbvia, continuei me esforçando até que… a cabeça desprendeu-se do corpo. Desesperada, eu gritei: “Nossa Senhora! Decapitei Nossa Senhora!”
O pranto foi agudo e sofrido. Entre lágrimas e soluços pedia desculpas a ela enquanto tentava recolocar a cabeça e, quando pensava em minha mãe querida, sabia que logo, logo, ere eu, quem ia ficar sem cabeça, pois quando minha mãe visse aquela atrocidade , iria, com certeza, perder a cabeça também! Seríamos três “descabeçadas “,mas, doer mesmo, só ia doer em mim!…
Tive a brilhante idéia de usar cola branca para recolocar a cabeça, mas não deu certo e o pior, lambuzei toda a roupa e o manto de Nossa Senhora…tive de lhe dar outro banho rápido, mesmo assim, seu manto azul celeste ainda ficou pegajoso. Mas o importante era colar a cabeça. Montei cabeça sobre corpo, direitinho e passei durex em volta. Achei que podia dar certo, mas ficou um horror e quando fui desfazer o horror, junto com o durex veio quase todo azul celeste do manto de Nossa Senhora! Eu. Irremediavelmente eu, era a culpada por todo aquele sofrimento da santa, como se não bastasse tudo o que ela já havia sofrido nessa vida… A culpa tomou então, conta de mim. Me sentia péssima, verdadeiramente algoz , e logo de Nossa Senhora, que não merecia aquilo -”se ainda fosse a cabeça do professor de matemática…mas Nossa Senhora? Como pude?”- me cobrava sem cessar. Eu merecia a pena de morte, ou melhor, eu merecia a morte sem pena!
Decidi, então, com a ajuda da própria vítima, recolocá-la, sem cabeça mesmo, na estante e esperar a chegada de minha mãe que, perdendo sua cabeça, deceparia a minha mas, pelo menos seria decepada com a cabeça de Nossa Senhora na mão e dignidade no peito.
Quando minha mãe chegou, me viu estatelada na cadeira , em frente à porta e foi correndo averiguar se eu estava bem: a vizinha do apartamento ao lado , me ouviu chorar e decidiu ligar para o trabalho de minha mãe, uma vez que, bateu na nossa porta e eu não respondi (na verdade eu nem ouvi). Balbuciando, contei à minha mãe o motivo de meu choro desesperado, mostrando-lhe a cabeça de Nossa Senhora em minhas mãos assassinas…
O medo que assombrava o coração de minha mãe, de que algo grave houvesse acontecido comigo, foi mandado dos céus, porque ela me disse com voz mansa, entre abraços e beijos: “Filhinha, é só uma imagem…muito bonita, mas apenas uma imagem. A mamãe vai dar um jeito de colar e se não conseguir, compramos outra. E Nossa Senhora vai continuar te amando pois sua intenção foi boa e Deus julga de acordo com a intenção! “
Aquelas palavras cairam como um bálsamo sobre o meu coraçãozinho de apenas nove anos. Aprendi que o amor de mãe é sempre maior que a raiva; que Nossa Senhora, mesmo decapitada, também é mãe, e, por isso não deixaria de me amar; aprendi que Deus julga conforme a intenção do coração e sabe o que mais? Senti tanta alegria naquele momento que descobri que a alegria cura a culpa! E, tornei-me devota de Nossa Senhora da Cabeça, como não podia deixar de ser !