O SALVA-VIDAS - 04/01/2009
Cinco horas, dezoito minutos e quinze segundos. Lembro desta hora por uma única razão: arranhei o relógio Technos original que comprei na nova ferinha do Paraguai, durante o intervalo do almoço. Pouco mais de três horas e ele já ganhava seu primeiro arranhão. Era irrelevante, afinal, ao longo da vida sofremos e provocamos arranhões. É a lei. Naquela mesma hora voltei toda minha atenção pra janela, pois um ruído de pneu freado bruscamente, e gritos de homens e mulheres desesperados ecoou no quarteirão. Fui ver o que era, tratava-se de uma colisão. Alguém se distraiu, e alguém foi penalizado por isso. Alguém machucou... alguém foi machucado.
Apesar de já ter visto muitos acidentes no cinema, na TV e na novela da vida, aquele chamara minha atenção, pois junto com a aproximação de pessoas dispostas a ajudar, outras dispostas a satisfazer uma curiosidade mórbida de observar a desgraça alheia, e muitas outras estáticas, sem saber o que fazer ou pensar, vieram chuviscos discretos, espaçados, anunciando que um temporal estava chegando. Mas logo naquela hora? Afinal um acidente acabara de acontecer! Mas com a natureza é assim. As chuvas sempre existiram e sempre vão existir. Se os indivíduos que agora eram protagonistas do acidente que acabara de acontecer não tivessem cedido a doce tentação de comprar o carro de tal modelo dois mil e nove em setenta e duas suaves prestações de novecentos e cinquenta e três reais e o outro não tivesse pego suas economias de um ano inteiro e comprado sua motocicleta Pop 100, aquele seria apenas mais uma chuva, não haveria acidente, ao menos não com aqueles dois. O fato é que agora um estava com a perna presa no pneu dianteiro do veículo, deitado de lado apreciando a visão da motocicleta que se partiu ao meio com o impacto e o condutor no veículo estava lutando pra aspirar alguns centímetros cúbicos de oxigênio, já que quebrou três costelas, e uma delas tinha perfurado o pulmão, por não usar o cinto de segurança. - Com certeza ele não diria a esposa nem a filha que usar cinto de segurança é coisa de fresco. – E ele não disse, pois em cinco minutos ele deu o último suspiro, e partiu desta pra melhor.
O Samu ainda não tinha chegado. Mas ainda não era hora de reclamar ou criticar. Do acidente até o óbito do rapaz só tinham passado cinco minutos que pareceram mais tempo devido ao aumento da chuva, pois o que começou com chuviscos inocentes já era o prenúncio de um forte temporal.
Quando o socorro chegou na rua já se via poucas pessoas, os meros curiosos já tinham ido embora, só restavam dois xeretas profissionais que levavam consigo o guarda-chuva 24 horas por dia. Passados trinta minutos desde o arranhão no meu relógio, absorto na janela outro fato curioso chamou minha atenção: O que já era ruim, estava piorando. O carro começou um princípio de incêndio, e os socorristas que tentavam retirar o motociclista e tirar o condutor das ferragens lutavam contra a chuva que estava começando a alagar a rua que já chegava a altura da metade do joelho, e isso para o motociclista era uma notícia ruim. Outro fato também chamou muito minha atenção. Na outra quadra, não muito distante, um flanelinha manobrista, alheio a todo aquele drama, como uma formiguinha dedicada em seu trabalho, transferia alguns veículos, que tinha a chave e que estavam sob sua guarda, para um local mais alto, mais seguro que sabia que dificilmente a água alcançaria. E a chuva aumentou, minuto a minuto.
Anoiteceu. O motociclista foi levado embora. A moto permaneceu. O condutor também, junto com um policial que fora designado para esperar a equipe do IML. A água estava na altura do joelho. Mais acima, num ponto seguro o flanelinha manobrista tomava conta dos veículos dos clientes que confiaram a ele a chave dos seus veículos, não permitiria que nenhum espertinho se aproveitasse da situação e furtasse algum toca MP3.
Dezoito horas e quarenta e sete minutos. Fui embora com meu relógio arranhado.
No dia seguinte. Liguei a TV para assistir ao noticiário. A principal notícia do dia foi a seqüência de desgraças da noite anterior que dá o pão de cada dia para muita gente. Em destaque, a notícia de um acidente em que um motociclista teve a perna amputada e ainda estava lutando pela vida pois chegara a engolir muita água enquanto esteve deitado no asfalto, e o óbito do condutor. Em seguida o depoimento de uma patricinha, de sorriso altivo, em prantos cristalinos que não chegavam a borrar sua maquiagem, abraçando super comovida o flanelinha que tirou o carro da mesma do foco da enchente, num dado momento uma repórter indagou:
- O que você achou da atitude deste rapaz que salvou o seu carro, levando-o para um local seguro, e passando a noite em vigília segundo testemunhos para levar para outro lugar se fosse necessário e impedir furtos?
Aos prantos a mocinha, olhou para câmera dois, como se estivesse num comercial e disse, sorrindo de forma altiva como sempre fazia e chorando ao mesmo tempo: - Este flanelinha... salvou a minha vida! – O que seria de mim sem meu carro?
AUTOR: Anderson Sant’ Anna