O olho do céu noturno
A foto foi tirada meio que por acaso, sem um planejamento que pudesse antever o seu possível significado. Se não por acaso – já que nosso subconsciente nos apronta peças –, pelo menos foi sem querer. Coloquei-a no perfil do Orkut. E também o fiz sem pensar no significado. Há uns cinco anos pintei um quadro que tem o desenho de um estábulo com uma luz dentro e, no céu noturno ao fundo, uma lua crescente e um enorme olho a olhar pra baixo. Um quadro legal, porém com traços ultra-simples. Aí as pessoas perguntam e eu explico que não é uma casa, e sim um estábulo. Quanto ao olho, eu digo que é o olho da noite. Às vezes eu digo que é o olho de Deus. Fiz em óleo sobre madeira. E quanto à tal fotografia? Certo dia minha filha Juliette estava tirando umas e fez essa, onde estou, frente ao quadro que pintei, olhando para esse enorme olho acima de mim. No momento da foto eu não estava bolando nada. Era apenas mais uma das minhas palhaçadas. Hoje dei pela coisa e vi que não foi palhaçada, não. Aquela foto é mesmo, para meu choque, eu olhando para o olho de Deus. Aquilo sou eu frente a frente com Deus. Encarando Deus.
Muitos não sabem que eu sou ateu. Outros muitos, pelo contrário, sabem. Estes, não gostam do que sabem. Prefeririam que eu esquecesse essa bobagem de ateísmo e me comportasse como um homem normal. Preferencialmente como um cristão normal, “enquanto há tempo”. Então vivo nesse esforço administrativo e diplomático, onde negocio o tempo inteiro com os que me cercam, fazendo concessões, adaptando o meu radicalismo materialista ateu à fé dos que comigo convivem, tentando estabelecer um meio termo, onde o diálogo e a paz sejam possíveis. A paz sempre exige meios termos. Já conheci ateus radicais. E, para minha decepção, alguns deles eram pessoas que mesmo eu não suportei, preferindo mesmo os crentes. São ateus radicais demais pro meu gosto. Pessoas sempre prontas pra ofender incisivamente, e sem a menor compaixão, os que têm alguma fé. Assim não dá. Não é a minha praia. Sei que já ofendi crentes e que até hoje devo ofender, de vez enquanto, em certos impulsos incontroláveis de egoísmo e insanidade humana um ou outro crente de qualquer religião, mas não vivo com esse propósito destruidor. Tenho uns pensamentos iconoclastas, é claro, como qualquer ateu, contudo prefiro hoje a tolerância ideológica. Até mesmo porque se eu não tolerar eu sou engolido. Já tive a ilusão de que poderia me unir a outros ateus e lutar contra a religião, o que considero um dos principais males do mundo, e fazer dessa luta um objetivo de vida. Só que eu cansei de maquinar coisas desse tipo. Cansei de encontrar ateus que não sabem exatamente o motivo pelo qual se declaram assim – muitos são ateus por pirraça. E é até compreensível. É como aquele adolescente que ouve Black Sabath ou Iron Maiden pra irritar os pais caretas ou para contrariar a sociedade capitalista cristã à sua volta, só de birra. Cansei de encontrar ateus que estão mais mal informados que os crentes. E aí não vale. Pra ser contrário a uma coisa, é bom que se conheça essa coisa. E é bom que esse conhecimento não seja superficial. Tem que ir fundo. Há de se conhecer com um mínimo de profundidade os livros sagrados e as religiões a que se quer criticar. E a disputa de idéias não pode ir pro confronto aberto, isso é inútil. Pois, não raro, as pessoas que optam por um credo têm suas bases a defender. Há pessoas que defendem muito bem seu credo. Elas podem inclusive estar felizes e seguras na fé que escolheram – embora eu saiba que é a religião que escolhe as pessoas, e não o contrário.
É. Eu e o olho de Deus. Sou eu e Deus. Não sou eu contra os crentes inocentes que foram pegos pelas garras inevitáveis e invencíveis dessa cultura humana milenar – e todos nós, crentes, agnósticos ou ateus, somos muito inocentes e manipulados pela máquina de inteligência antinatural. Não se trata disso. Ali, sou eu contra os que forjaram o maior personagem da história: Deus. Histórico ou lendário? Real ou fictício? Não importa. Deus é o cara. E hoje vejo o tamanho daquela foto na minha vida. Ela sintetiza minha luta contra o que julgo falso. Minha luta contra o que julgo negativo e pernicioso. Minha luta pra desvendar coisas maldosamente, requintadamente, maquinadamente escondidas. Minha luta contra esse lindo véu de seda colorida que é a religião. Minha luta pra mostrar que uma história contada não passa, muitas vezes, de apenas uma história contada, com todos os símbolos a que tem direito, e vai, obviamente, se utilizar destes ao máximo. Minha luta contra o Deus que um dia foi criado pelo homem. Minha luta contra mim mesmo, e contra o que tentaram fazer de mim. Minha luta pela verdade. E, tenho que reconhecer, neste caso, por uma única verdade. E as verdades, como se sabe, são muitas. Estou meio cansado. Não sei se ainda luto contra esse dragão – e, lembrando Dom Quixote, estou seguro de que ele não é um moinho de vento. O Leviatã tem, mais do que garras e várias cabeças, raízes. Ainda assim, e ainda por isso, acho que, por agora, vou ficar na minha, quieto. Ao menos por enquanto. Não tenho armas para uma briga dessas. Não sou um covarde. O fato é que tenho outras batalhas para as quais preciso estar inteiro. Sinto-me e vejo-me como um homem de bem, que luta pelo bem de sua vida e da vida dos outros.