Durante o natal
Acordei com os primeiros raios de sol de 25 de dezembro. Na noite anterior, em todos os lugares me impediram de celebrar. Alegaram que eu não poderia entrar vestindo roupas sujas, camisa rasgada, pés no chinelo.
Uma a uma as portas se fecharam. Fui caminhando, caminhando até chegar a esta porta que me abrigou da chuva das dez e meia. Ontem à noite, pelas janelas das casas, vi dúzias de pessoas reunindo-se para comemorar. Com fome, abandonei instantaneamente meu abrigo provisório, toquei na campainha e perguntei para a mulher que me atendeu se havia algum resto de comida. Acho que ela queria dar, mas uma voz masculina a recriminou. Que história de deixar os convidados sozinhos para atender um pilantra, maloqueiro, trombadinha?
Voltei correndo para baixo da porta. De longe, numa casa com mais pessoas, um clérigo repartia o pão e distribuía pequenas taças de vinho. Comemorando o quê? O nascimento? De quem?
Enquanto isso, uma senhora que conheço de longe, expulsa de casa pelos netos, perambulava com uma sacola. Aproximou-se desarmando o guarda-chuva velho e cheio de furos, tirou um pedaço de pão que recolhera nos resquícios de uma padaria e me desejou feliz natal. Quis desejar-lhe o mesmo, que ficasse um pouco e comemorássemos juntos à meia-noite, mas ela saiu calmamente, armando magicamente o guarda-chuva velho cujo teto invisível, construído por anjos, a protegia dos grossos pingos. Certamente procuraria outras pessoas, outras crianças como eu, para distribuir um pedaço de pão, um pedaço de carinho, um pedaço de amor.
Comi animadamente. Quando o barulho das pessoas se abraçando e festejando rompia o troar, eu quis pedir alguma coisa. Talvez para Papai Noel, talvez para o mundo, talvez para mim mesmo. Quis pedir um carro para eu brincar nas tardes do parque Buracão, uma família nova, que meus pais aparecessem de qualquer lugar. Interessava o nosso encontro, a nossa família, as alegrias, as broncas...
Foi justamente quando eu pensava nas broncas que me lembrei do Pedro. Pedro morava na esquina da rua de nossa casa. Tinha mais de setenta anos. Rabugento. Briguento. Nervoso. Quando meus pais desapareceram, ele e a esposa ofereceram-me abrigo. Recusei. Achava incrível viver na rua. Sem escola, sem trabalho, sem ninguém me mandando tomar banho ou comer todo o almoço. Pedro sempre me encontrava dormindo nos bancos de praça, embaixo de caixas de papelão nas portas de bares perto da rodoviária.
À meia-noite, lembrava-me de Pedro. De como gostaria de ouvir suas reclamações, de cumprir suas ordens para tomar banho, para não desperdiçar comida, para beber todo o leite, para escovar bem os dentes e pentear os cabelos. Pedi para alguém – não me lembro se para Papai Noel ou se para o menino que nascia – que pelo menos Pedro aparecesse... Por mais que procurasse, ninguém para me levar. Um pouco de comida, carinho, até mesmo reclamações e ordens.
Como eu disse, acordei com os primeiros raios de sol de 25 de dezembro. Ao meu lado, um boneco de sorriso pensativo e olhos engraçados embrulhado num papel de presente vermelho dentro do qual vislumbrei um pequeno cartão. Pedi para um transeunte ler.
“Ainda bem que você não é meu filho. Se fosse, aprenderia a obedecer na paulada. Não precisava dormir na chuva. Mas tem gente que só aprende sofrendo muito. Feliz natal.”
Coloquei meu presente no braço, segurei o cartão na mão esquerda e com a mão direita reverenciava o Sol que apontava o caminho do meu verdadeiro presente de natal.
*Publicado originalmente no “Jornal de Assis” (Assis – SP) de 30 de dezembro de 2008.