Sobre a mentira como método pra se dizer a verdade
Em certa pesquisa internacional, dessas publicadas pela influente, respeitada e odiada revista Veja, resultados apontavam para um suposto fato, de que uma pessoa comum fala, em média, 30 mentiras por dia. O número assusta qualquer um, é claro. Aí o que a gente faz? A gente pega e relativiza a coisa: quem sabe digamos apenas umas 15 mentiras por dia, ou, quem sabe, 10, ou 5. Ou então não levamos em consideração tal pesquisa. Mas... Como não considerar essas pesquisas? Informações como esta nos levam, em maior ou menor grau, a uma reflexão. Não tem como fugir disso. Eu mesmo, penso agora em minha relação com a mentira. Sei que menti muito durante toda a minha infância. Menti bastante também durante a adolescência. Talvez eu possa mesmo ser um bom mentiroso. Ou um mentiroso com um talento médio, pelo menos. Também andei mentindo um pouco já adulto – e a palavra adulto pra mim quase sempre traz aspas implícitas. De uns tempos pra cá, entretanto, resolvi falar só a verdade – o que para os pesquisadores em questão deve ser algo, dirão, impossível. No entanto, garanto que fui muito verdadeiro nos últimos anos. Tentei, ao menos. E, comparando-me com outras épocas, eu tenho certeza de que menti bem pouco (segundo os pesquisadores, poucas vezes a cada dia). E nisso eu não sei se fiz a melhor opção. Minhas verdades machucaram pessoas. Atraíram a antipatia de pessoas que antes eram simpáticas a mim. Falar a verdade é uma barra bem pesada. Em alguns aspectos chego a me arrepender de ter sido tão transparente. E de que adianta sermos transparentes se dentro de nós o que há é merda? Sim, isso mesmo. Refiro-me a todas as merdas que nossa cultura nos enfia pelos olhos, ouvidos e boca durante toda a nossa vida, desde que nascemos. Resultado: hoje procuro usar filtros mais dinâmicos para as minhas falas. Não tô a fim de sair por aí ofendendo pessoas com verdades, até mesmo porque são “apenas” as minhas verdades. Nossos pontos de vista são meros pontos de vista. Nossa visão é desgraçadamente rasteira. No entanto também não podemos – e nem devemos – abandonar de vez toda e qualquer verdade pessoal construída. Se assim o fizéssemos, seríamos sinceros como bichos. E, nada contra os bichos – pois sei que são mais sábios que nós –, mas não podemos mais, a essa altura do campeonato, ter a sinceridade de um animal, num mundo tão impregnado de símbolos como este que criamos. Temos nossas verdades, sim. E estamos presos a elas e precisamos delas pra viver e elas são nossas âncoras... Âncoras: não flechas. Sejamos cuidadosos com nossas verdades, passando-as aos outros com certo cuidado. É uma tarefa bem difícil, claro que é. E eu bem sei.
Um bom filtro para verdades é a mentira da arte. Quantas vezes os artistas disseram as verdades que queriam dizer usando de artifícios enganosos, que são os diversos tipos de signos artísticos? Um quadro que não revela abertamente a intenção do pintor; uma canção que não diz diretamente o que quer dizer; um romance; um conto; um poema; tudo isso pode estar ocultando verdades. Ou melhor, filtrando-as. As leis da física são o que de mais próximo se tem da “verdade”. E a arte, por sua vez, é o que mais se assemelha à mentira. É o artifício, é o jeitinho dos homens e mulheres para enganar seus próprios sentidos em prol de uma coisa que só nós, humanos, almejamos: o bem estar estético. Procuramos a boa música, a boa literatura, enfim, a boa arte, pelo simples motivo de que nos falta a boa vida. Falta-nos a verdade suprema. Falta-nos a plenitude tão querida pelos antigos gregos. Não somos plenos em alegria e nem em verdade. Somos frustrados nestes quesitos. Talvez os próprios gregos tenham pretendido tapar esses buracos com a grandiosa arte que empreenderam. Talvez eles soubessem, já, muito bem que nos falta essa tão ausente boa vida.
Quando escrevo um poema eu sou o homem mais verdadeiro do mundo, e também o mais mentiroso. Talvez a maior parte da literatura universal gire em torno de uma abstração: o amor. A frase “eu te amo” é um signo. Ela que dizer um monte de coisa. Ela pode estar dizendo um monte de coisas ao mesmo tempo. Ela pode estar escondendo outras. Ela pode estar dizendo nada. É uma das frases mais belas criadas pela cultura humana e está presente em todos os idiomas. E não é uma frase plena de verdade ou, ao menos, de significado claro, como por exemplo “eu estou com fome” ou “eu estou com tesão”. Contudo é, sim, bela. Ela pode ser doce ou amarga – tudo vai depender da ocasião, do falante e do ouvinte. “Eu te amo” é uma frase impressionante. Como alguém poderia estar sendo absolutamente sincero ao dizer algo tão poderosamente carregado de simbologia? Parafraseando um grande letrista do rock brasileiro, Cazuza: “amor é uma mentira que a nossa vaidade quer”. Ou ainda: “mentiras sinceras nos interessam”.
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