Viagem segura?

Verão. Fim de um ano muito estranho. Manhã triste e lindamente nublada. Ontem, assim como já hoje e toda a noite que passou, eu viajava. Viajei na minha cadela, Lisbela. Como eu viajei nela... Fiquei pensando sobre seu amor. Será que a submissão de Lisbela é um jogo? Será que ela só me agrada e me olha com aqueles olhinhos que só ela tem, apenas para obter de mim carinho, comida e proteção? (Proteção eu não sei se ela sabe o que venha a ser.) Viajei um tempão nela. Eu acho esse termo muito engraçado: viajei. O verbo viajar usado dessa forma. Engraçado como ele expressa bem o que se sente. É um emprego meio hippie da palavra viagem. Não sei se hippie, não sei se surf, não sei se beat, não sei se neo-anarquista. Mas, sim, expressa razoavelmente bem o que se pretende dizer. É como se o tempo destinado à observação de algo fosse surpreendente e revelador, como uma viagem. Então, ontem viajei na minha cadela. Mas também viajei nas crianças que freqüentam minha casa. Viajei em minha mãe, com seu cabelinho querendo, tardiamente, ficar branco. Viajei na televisão, que insisto em assistir e insisto em gostar. Vi uns curta-metragens muito legais. Quando eu fui pra cama, eu viajei no corpo da minha mulher – e nele eu sempre viajo. E viajei muito naquela posição que ela sabe que me faz gozar rápido. Ela sabe ser uma estrada ensolarada quando quer. Muito embora eu quase sempre prefira viagens longas, e com nuvens ao redor. E, agora, nessa manhã de terça-feira, eu viajo no meu pequeno quintal e na paisagem branca do meu bairro. Depois de ter ido lá fora sentir um pouco de frio – gosto de sentir o frio de uma manhã como esta – eu estou aqui, diante do monitor, mas com a janela do quarto aberta à minha direita, e dando uma olhada nas folhas de figo que balançam com o vento, e atrás delas, as folhas verde-escuras de tangerina.

Lisbela fica presa nos fundos, na pequena área de serviço. O quintal acaba sendo perigoso pra ela. Há menos de um ano ela fugiu e foi atropelada. Numa bobeira, ela saiu pelo portão da frente e foi em disparada para a outra rua, onde encontrou um belo cãozinho peludo que pretendia namorar com ela, que estava no cio. No cio, tadinha. Ela nunca namorou. Encontrara naquela tarde um namorado. Então encontrou também o pára-choque de um carro. Quando a fui socorrer, o rapazinho peludo lá estava, já havia bastante tempo, de pé lhe fazendo companhia. Peguei-a no colo. E sabe o que aconteceu? O cara veio nos acompanhando até o meu portão. E eu o agradeci pela atenção dada à minha bonequinha vira-lata e me despedi dele. Que interessante a atitude do cãozinho. Quanta atenção dispensada. Negócio bonito de ver. Amor? Não: sexo. Mas qual a diferença? Os dois são lindos. Em segredo eu sei que o sexo é mais lindo. E, voltando ao acidente... Pensei que ela não fosse mais andar. Uma lesão na coluna, eu imaginava. Ainda bem que ela apenas fraturou a bacia e mais uns ossinhos: vértebras, perna, etc. Mas a coluna ficou intacta, como vimos na radiografia. Então hoje ela só manca um pouco, tendo ficado com a traseira meio torta. Pra nossa alegria, teve uma excelente recuperação. E, olha, já fez coisas maravilhosas depois do acidente, como, por exemplo, matar ratos: até agora três.

De lá pra cá, ela fica sempre na área perto do tanque de lavar roupa. Uma prisão, na verdade. Contudo, sua grande alegria é ultrapassar a porta da cozinha, entrar pela casa, vencer a sala e dar para o quintal em alta velocidade. E penso: que bom que ela voltou a correr. E viajo nessa felicidade dela ao ultrapassar o limite a ela determinado para a sua segurança. Um limite determinado para a sua segurança. Para a sua segurança.

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