Um gato!

Não, definitivamente não é apenas o gato desfilando sobre o muro, nesta tarde fria, olhando para mim. Mas, talvez, a doce lembrança de uma menina que passou pela minha vida; com sua destreza de gato, sua cauda de gato, sua malícia de gato.

Nesta tarde fria, olho para aquele gato, e penso em Bia com uma ternura que não pede palavras. Dela me recordo sem afetação nem esperanças. E nada espero da tarde, além daquilo que uma tarde fria pode dar a um homem: uns poucos raios de luz, uma constante garoa fina. Nem espero, ao menos, encontrar nos olhos daquele gato qualquer coisa misteriosa; nada, além dessa suave lembrança que bruscamente me assaltou ao vê-lo.

Em verdade, é sempre assim quando vejo um gato, e é muito provável que seja assim durante muito tempo. E não importa se o gato seja magro ou gordo, se ágil ou lerdo, se preto ou branco, a lembrança me assalta sem discriminações de natureza alguma.

Mas, ao vê-los, não farei como Bia.

Bia era uma doida sem freios, às vezes uma lagartixa listrada, mas na maioria das vezes ela era um gato mesmo. Um gato de botas para ser mais exato.

Capaz de incríveis aventuras etílicas (para não chamá-la de cachaceira), vivia cada segundo religiosamente, numa íntima comunhão com todas as coisas. Os bichos eram seus prazeres. Nunca a vi reclamar do sol. Dançava na chuva e sorria da minha cara de bobo. Era uma boba. Amava petelecos na testa e seu disco favorito do Legião era Descobrimento do Brasil. Bucólica, gostava de respirar bem fundo e ficar de olhos fechados por muito tempo, muito tempo, como se fosse um monge budista, mas não era monge budista: era um gato de botas!

Bia tinha o terrível hábito de dizer que eu era poeta. Inventava coisas, dizia que eu seria professor de literatura apenas para seduzir minhas alunas, embriagando-as com vinho e com poesias de Pablo Neruda. Mas era tudo mentira de Bia, é claro que eu não faria uma loucura dessas. Jamais faria!

E mesmo na lucidez, Bia era capaz de inesquecíveis façanhas. Como o costume de gritar “um gato!” toda vez que topava com um. “Principalmente os gatos com cara de pastel”, dizia ela. E não importava se a rua estivesse movimentada. Se lhe surgisse um gato, de repente, na sacada, sobre o telhado, na varanda, seu grito era certo:

- Um gato!

E ficava parada, olhando o gato, com uma fascinação que assombrava as pessoas que passavam. Andar com Bia tinha dessas estranhas surpresas. Confesso que na primeira vez me assustei com aquilo, o vexame público, as pessoas olhando. Mas logo passei a tomar um gosto irresistível por aquele vexame, e toda vez que caminhávamos juntos, ficava olhando para os lados, só para ver se encontrava algum gato pelo caminho.

Para Bia, a simples aparição de um gato, por mais banal que fosse, deveria ser tomado como um verdadeiro milagre, a que todos devêssemos admirar, com profundo deslumbramento e reverência.

Bia era assim, uma louca.

Lembro de Bia correndo para o Lago Paranoá. Eu lhe dizia que era tarde, podia ser perigoso; tinham cães soltos por ali, e cães odeiam gatos. Ela não me ouviu, e correu como uma louca em direção ao Lago, pulou cerca, se meteu nos matos. Não tive escolha, corri atrás. Chegando às margens, falamos qualquer bobagem que não me lembro mais, sorrimos, e ficamos contemplando como dois bobos, aquele melancólico lago que a triste neblina encobria com sua bruma.

E ficava contemplando o seu rosto, serenizado, rosto de menina, enquanto admirava o lago. Era como se ela estivesse me ensinando, mesmo sem querer e sem dizer qualquer palavra, que não há nada que seja maior do que as pequenas coisas.

Mas tudo isso faz tanto tempo!

Hoje, nessa tarde fria, olhando aquele gato, curto essa nostalgia tranquilamente, sem afetações nem esperanças. Da tarde fria, nada espero além da garoa. E daquele gato, nada mais do que uma lembrança, uma doce lembrança de Bia.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 29/12/2008
Reeditado em 16/07/2011
Código do texto: T1357854