ROUPA QUE NÃO SERVE MAIS
Após muita relutância comigo mesmo, decidi viajar até à casa de meus pais no interior de São Paulo. A pequeníssima cidade fica a mais ou menos 400 Km de distância da capital, têm aproximadamente uns 15 mil habitantes e às vezes o ar da cidadezinha tem cheiro de mel.
É verdade, o ar cheira mel. Não sei de onde vem o tal perfume, pois meu pai me assegurou não haver apiário por perto e ninguém além de mim sente o tal cheiro. A cidade têm ruas limpas, poucos carros, pouca gente, 1 (um) único semáforo, nenhuma pixação e, claro, uma praça com igreja católica e o banco Bradesco ao lado.
Cometi a bobagem de ir à noite para lá. Saindo daqui às 21h00 chega-se mais ou menos às 02h00, plena madrugada. Chego à cidade por volta do citado horário e lá está meu pai de pé a me esperar. Demos as mãos e perguntamos um ao outro: Tudo bem?
E da rodoviária até a chegada na casa dele foi tudo o que dissemos; “Tudo Bem?”. Nenhuma outra palavra foi falada. Isso por que fazia pelo menos uns seis meses que não nos víamos. Rapidamente chegamos, entrei e minha mãe veio me receber de roupão. Achei estranho porque não acenderam nenhuma lâmpada. Havia somente a luz de pequenas lâmpadas de pouquíssima voltagem, minha mãe me abraçou, trocamos duas palavras e então logo foi para cama. Meu pai mal chegou e já foi se deitar sem dizer nada. Encostei-me na pia e comecei a pensar na besteira que tinha feito.
Pela manhã, logo após o café, conversei um pouco com minha mãe. Falei a ela sobre as coisas de minha vida, quando comecei a falar sobre a educação de minha filha, que lhe daria uma boneca muito cara, ela disse: “É, fica passando a mão na cabeça”. Ela já havia me dito isso numa outra ocasião e eu não tinha gostado nada, então falei: “Passando a mão na cabeça? O que a senhora entende por passar a mão na cabeça? Por acaso devo criar minha filha debaixo de pancadas? Como a senhora fez conosco?
Criou-se já um pequeno mal estar. Então ela começa a falar sobre o porquê de eu não procurar meu irmão, então eu disse: “Procurei meu irmão por diversas vezes, mas ele nunca me procurou, exceto quando precisou de uma pessoa para emprestar-lhe o “nome” para comprar um celular, então foi até mim. E pior, não pagou nenhuma das parcelas do aparelho, também nunca mais me ligou para dizer o que estava acontecendo, a senhora ainda quer que eu o procure?”.
Ela não gostou nada do que eu disse, o mal estar cresceu ainda mais e senti que ela passou a me ignorar. Então tive vontade de voltar naquela mesma hora. Minha intenção era chegar no sábado e voltar na terça-feira, porém havia um tio meu que estava por lá e iria voltar no domingo após o almoço, não tive dúvida... Depois de meses sem ver meus pais, não consigo ficar dois dias com eles.
Quando disse que iria embora no domingo me disseram para que não fosse, que ficasse um pouco mais, mas eu já havia me desiludido e estava determinado a voltar.
Notei que hoje de maneira alguma poderia novamente voltar a morar com eles. Eles têm hábitos completamente diferentes dos meus, como por exemplo ir dormir às 20h30, acordar às 05h30, irem tomar banho sempre às 16h00, falar pouco, ter tudo programado na vida, mania de economizar em tudo, serem escravos das obrigações, indiferentes, sem demonstrações de qualquer tipo de afeto, quererem que concordemos com as suas opiniões, etc.
Senti na pele o sentido de uma frase de uma música do Belchior, “Velha roupa colorida”:
“No presente a mente o corpo é diferente e o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
Se houve em meu passado com eles algum bom momento, um momento de felicidade, hoje já não significa mais nada. Perdi completamente a vontade de tentar estabelecer algum tipo de relação com meus pais.
Essa roupa também vou ter que deixar, pois já não me serve. Hoje, quando tento usá-la, ela me aperta, me incomoda...