AS RECEITAS DO CÉU!
Quase zero horas do NAtal e estávamos, como de costume, reunidos na sala da nona Francisca, numa mesa de madeira redonda de embuia maciça, de largo diâmetro, e que acomodava a todos da família.
Nona Francisca era minha madrinha, mulher do nono Miguel, mas naquela minha época de criança todas as pessoas da família que já passavam dos cinquenta anos já eram nonas.
Se fosse hoje, eu ainda escaparia...mas por pouco tempo. Ufa!
Minha mãe insistia no "tenha modos menina', só porque eu adorava agarrar o quebra-nozes, quase sempre "quebrando" os meus dedos. Naquele tempo as nozes (que tinham um sabor de céu!) me pareciam feitas de pedra.
Meu pai, num pequeno soslaio taciturno, me fazia tremer e aquietar.Mas também era por pouco tempo.
De repente escorregava por baixo da mesa e lá ia eu na cozinha ver a nona Francisca fritar aqueles bolinhos de espinafre que sempre tinha na mesa da grande noite e que só ela sabia fazer.
Ao começar a ceia eu já estava empanturrada deles.
Quando nos deixou, levou a receita para os céus... guardando-as às sete chaves.
Lembro-me bem que era meio cultural não passar as receitas italianas fantásticas para outras panelas, e elas mais me pareciam segredo de Estado.
Isso também aconteceu com a croscata de nozes da nona Tereza.
Quando chegava com a assadeira na mão, pronta para a ceia, logo me dizia: "seu pedacinho já está aqui, bela!"
Um pedacinho do céu.
E naquela noite também me lembro do espaguete. Minha mãe me ajeitava o pescoço com um guardanapo de linho branquinho, que a mim me parecia uma forca! E ainda me advertia , "não vai fazer sujeira nele".
Eu tomava o maior cuidado, e nunca entendi para o quê servia aquele apetrecho.
E o primo Vicente ficava bravo se eu não enrolasse com muito cuidado , no meu garfo, os fios compridos do espaguete, embora não tivesse eu muita habilidade para tal. Não sabia o que era mais difícil: se manusear o macarrão ou não sujar o linho...
Ainda hoje não tenho a tal habilidade no garfo, e certa vez numa viagem, na tentativa mais prática de cortar o espaguete, levei uma bronca dum garçon de Veneza, por tentar assassinar o macarrão. Fuzilou-me com o mesmo olhar do meu primo Vicente!
Ele estava certo, um legítimo espaguete italiano, ainda mais do céu!, tem de ser acarinhado antes de ser deglutido.
E naquela noite, também trocamos presentes.
O meu eu jamais esqueci. Ganhei uma caixa da nona Olga, que quando a abri, cintilei como as receitas do céu: continha letras gigantes de acrílico, do alfabeto inteirinho! Foi muito divertido aquele meu presente.
Tão divertido que cá estou eu , até hoje , a brincar com aquelas letras.
Texto verídico.