O dia em que li o Apocalipse
Eu devia ter uns 8 anos, não me lembro bem, quando aquele misterioso livro do Apocalipse me tirou três longas noites de sono. E não era por falta de aviso não. Eu até conhecia, como qualquer menino da minha idade, aquele velho ditado que dizia que “a curiosidade matou o gato”: mas as mãos do menino, e todos sabem como são teimosas as mãos dos meninos, resolveram folhear as páginas daquele livro, tão comentado pelos adultos.
Pra quê? Hoje me pergunto. Mas não convém a gente querer entender o que se passa na cabeça de uma criança, o máximo que podemos fazer é prevenir qualquer molecagem, antes que elas cometam. Mas naquele dia ninguém percebeu quando o menino meteu a mão naquela Bíblia e, se viram, possivelmente devem ter pensado: vejam ali um menino santo. E para a minha mãe que me sonhava padre, aquilo certamente era o meu primeiro passo rumo ao sacerdócio. Portanto, estavam-me abertas todas as portas para a molecagem.
E foi tomado de curiosidade e cheio de sobressalto que folheei aquelas páginas. É claro que naquela época eu não entendia nada do que lia (E ainda hoje continuo não entendendo nada). Mas o meu imaginário de menino, foi todo ele, se povoando com aquelas terríveis imagens apocalípticas: os sete selos, as sete trombetas, as sete igrejas, os sete anjos, os sete guardiões, os sete candelabros, as sete estrelas; era tanto sete, mais tanto sete, que cheguei a fazer uma aposta com um amigo na escola, defendendo com toda a certeza desse mundo que naquela época o homem só tinha descoberto o “sete”. Depois é que o homem descobriria o “cinco” e o “oito”. Não sei quais critérios utilizei para sustentar essa lógica: o que sei é que a defendi com unhas e dentes. Até que veio a professora de português com a petulância de dizer que eu estava errado. É claro que não dei o braço a torcer, alegando que seria melhor a gente consultar a professora de matemática, pois a professora de português é uma burra e não sabe de nada!
Daí não precisa ser um gênio para saber onde parou a discussão: perdi a aposta, apanhei do colega, e desde aquele dia passei a detestar matemática.
Mas nada me impressionou mais naquele livro, do que a descrição que São João (supostamente o apóstolo que escreveu o livro) fez de Deus.
Valha-me Deus, aquilo é uma coisa de louco! Se São João fizesse qualquer pintura daquilo que diz ter presenciado, possivelmente descobria o Surrealismo uns 2000 anos antes de Salvador Dali. A descrição que ele fazia era assim (tentarei reproduzir aqui da melhor maneira possível, pra não cometer o pecado de corromper uma vírgula do livro sagrado): dizia São João ter sido arrebatado por uma espécie de êxtase e que, atrás dele, ouviu uma forte voz, como de uma trombeta. Voltou o rosto para o lugar de onde vinha a voz, e foi nesse instante que viu Deus: era um senhor que se assemelhava a Jesus Cristo. Vinha entre sete candelabros de ouro, vestindo uma longa túnica até os pés; cingido o peito por um cinto de ouro. E tinha ele cabeça e cabelos brancos como lã cor de neve.
Bem, nessas alturas ia tudo bem: do jeitinho que eu imaginava Deus. Só lhe faltavam as longas barbas do Papai Noel para confirmar a minha imaginação. Mas a seguir o menino espantou-se: descobriu que Deus, conforme a descrição de São João, tinha olhos que pareciam chamas de fogo, seus pés se pareciam ao bronze fino incandescido na fornalha e sua voz era como o ruído de muitas águas. Diz São João, ainda, que Deus segurava na mão sete estrelas e que, de sua boca, saia uma espada afiada, de dois gumes. E a imagem ficou ainda mais confusa na minha imaginação, quando São João concluiu que seu rosto se assemelhava ao Sol, quando brilha com toda a força. Nesse momento, o menino ficou em estado de choque. E morrendo de medo, cheio de culpa, concluí que Deus era mais feio que o próprio diabo. Afinal, diferente de Deus, esse tinha apenas dois chifres e uma caldinha pontiaguda.
Mas era tão terrível e profana essa conclusão, que procurei inutilmente escondê-la de mim mesmo. Como podia achar Deus mais feio que o diabo? Só esse simples pensamento era o meu ingresso de entrada para o inferno. Ao cabo de três noites sem dormir (poderia dizer que foram sete noites para impressionar o leitor...) tomei coragem e reli a parte que São João descreve Deus. Como eu não conseguia assimilar todas aquelas características simultaneamente na minha cabeça (só com uma força mental enorme para tal feito), tive a idéia genial de tentar reproduzi-las fazendo um desenho. Ora, a depender do resultado final, poderia até servir de ilustração da Bíblia Sagrada, com o consentimento do Papa e tudo. Mas naquela época a criança não tinha grandes ambições, e só queria, simplesmente, ver aquela imagem confusa de Deus colocada no papel. E foi o que fiz.
Como tinha o hábito de desenhar (até revistinhas em quadrinho eu fazia...), não tive grandes dificuldades para fazer o desenho. E foi arrebatado por uma espécie de êxtase que desenhei: tentando assimilar aquela estranha fisionomia: a brasa nos olhos, a longa túnica, os cabelos branquinhos como a neve, o rosto feito raios de sol, a espada de dois gumes saindo pelo boca. Desenho concluído, novo espanto: descobri para minha felicidade que Deus não era tão feio assim... Muito pelo contrário: era lindo! Era a coisa mais magnífica que tinha visto em toda minha vida. Naquela altura todo o meu sentimento de culpa foi-se embora. Sentia-me leve, reconciliado com Deus, não iria mais para o inferno. E, para fechar com chave de ouro a minha reconciliação com Deus, fiz um desenho bem feioso do diabo, o diabo mais feio que desenhei na minha vida: com seus chifres, caldas pontiagudas, tridente e tudo. Mas tudo exageradamente feio: incluindo um nariz de morcego.
E cheio de orgulho e alívio fui mostrar a obra-prima pra minha mãe. Ela cortava alguns legumes na pia e me perguntou, assustada, quando lhe mostrava o desenho de Deus:
- Que diabos é isso, menino?
- Não mãe, esse não é o diabo não: esse é Deus...
- Deus? Pois pra mim isso parece o diabo. Vá jogar isso no lixo, vá!
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Depois disso fiquei mais quatro dias sem dormir: e nunca mais desenhei o diabo.
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