Esperando Morfeu chegar



A casa está silenciosa. A rua também. A janela aberta deixa entrar o vento frio depois da chuva. Morfeu ainda não chegou para me tomar nos braços e me levar para a cama. Penso que vai demorar. Enquanto não chega, busco distrações. É dezembro e agora já é verão. O Natal se aproxima. Será o primeiro Natal sem Ronaldo. O primeiro Natal sem alguém que se ama é sempre difícil. A sombra da ausência cobre todos os momentos por mais luminosos que sejam. Algumas ausências são temporárias e se fazem presenças por telefone por mais distantes que estejam. Há sempre a esperança de um novo tempo juntos. Mas Ronaldo não volta mais. Não pode voltar. Desistiu e foi embora. Em junho, deixando conosco o inverno de nossas ilusões. Que está custando a passar.
Nunca foi fácil viver com ele. Estar junto dele era estar junto de uma bomba relógio prestes a explodir. Não chegou a explodir. Foi desativada pelo mal que corrói o corpo. Porque o mal que corrói a alma já o tinha atingido há algum tempo. Mas se entregou de mansinho como se estivesse feliz. Conformado. Pronto para ir em busca de novos caminhos. Em busca da luz cuja ausência limitava sua visão.  Longe das cercas que limitavam as suas andanças. A co-dependência nos unia. Eu lutava para me livrar dela, mas hoje a queria de volta. Nem que fosse só pelo Natal.
Não era essa a distração que eu buscava para esperar a chegada de Morfeu. Mas foi essa que estava disponível em meu coração. Devagarinho, enquanto meus dedos pousam suavemente pelas teclas eles vão chegando. Todos que nunca mais estarão reunidos comigo. Não aqui, nesse plano. Os nomes vão deslizando pela tela: Tarcísio e os seus meninos que nunca viram um Natal. Geraldo, que até depois da partida continuou sendo o provedor. Maria e seus filhos que a seguiram: Ulisses, para sempre distante de Ítaca. Alemão, o bonachão. Amelinha, a tia-madrinha cujo coração já tinha ido embora muito antes que seu corpo, para acalentar seu menino perdido. Dito que foi se juntar aos seus irmãos Beneditos – foram quatro no total – frutos da teimosia de uma mãe que queria ter um filho abençoado e o mais novo de todos, o caçula, Francisco como o pai que nem eu e nem ele conhecemos. Quando o cabeça de fogo se foi é que a Morte se apresentou a mim. Antes, era apenas uma sombra que passava pela casa dos outros e nunca pela minha. Quando finalmente chegou me deixou desestruturada por um longo tempo. Eu perdi então meu primeiro grande amigo.
Outras sombras passam por mim. Parentes, conhecidos, amigos, até uma grande paixão. Pessoas que admirei, algumas que nem mesmo cheguei a conhecer. Meus ídolos, exemplos de vida. Elas estão indo embora, desaparecendo pela janela aberta, sumindo na noite escura sem lua ou estrelas. Ouviram os passos de Morfeu que se aproximam para me embalar. Meus olhos estão se fechando antecipando o momento ansiado: o momento em que a paz baixará até meu coração dolorido, revigorando-o para um novo dia que não vai demorar a chegar. Quando enfim as sombras desaparecerão.