Na rua da minha infância

Caminhando pelas ruas do meu bairro, em Ceilândia, com o rotineiro propósito de espairecer essa minha alma tão tumultuada de pequenos problemas, vou recordando em cada quadra ou esquina que passo as coisas que vi e vivi nestes poucos anos de minha atarantada mocidade.

Aqui não teremos, evidentemente, as memórias de um pobre velho amargo e nostálgico, a dizer que naquela época as coisas não eram assim, que as mocinhas eram mais discretas e se davam o respeito, e que não existia tanta violência como tem hoje. Não, não serão as memórias de um velho, muito embora uma ligeira caminhada por essas ruas do meu bairro seja suficiente para se esbarrar com vários deles. Não propriamente nas ruas, mas enclausurados em seus quintais, sentados em suas cadeiras de balanço, deixando essa vida besta passar.

Poucos são os que se arriscam a colocar suas cadeirinhas na calçada, à moda antiga. “É bandido pra todo lado”, queixa-se meu avô, um desses que vivem enclausurados em seus quintais, com saudades do tempo em que vivia no Piauí, onde podia sentar-se tranquilamente na calçada, a travar saborosas conversações até tarde da noite com seus vizinhos, fuxicando sobre a vida alheia. Pude flagrar ainda na minha infância o finalzinho desses bons tempos do meu avô nas poucas viagens que fiz com a família à Teresina. E realmente, levava-se uma vida pacata e razoável; diria, quase ingênua. Mais tarde é que as coisas se complicaram. Com o crescimento exponencial das principais cidades do país e a marginalização brutal de boa parte da população, as ondas de violência foram se tornando cada vez mais intransigentes, com seus assaltos, seqüestros relâmpagos, homicídios, estupros e pequenos furtos. E não há hoje pequena cidade no país que não sofra com esses problemas.

Mas nada se tornou maior nem mais doentio, com certeza, do que essa paranóia que gira em torno da violência urbana. E é justamente essa paranóia, alimentada diariamente pelos meios de comunicação com seus noticiários, que dá a essas gentes do meu bairro, e de qualquer bairro suburbano do mundo, essa fisionomia de submissão e medo. Foi-se embora o tempo daquela conversa mole até tarde da noite, do convívio entre os vizinhos, da prática das cadeiras na calçada. Daí a nostalgia (justificada) dos mais idosos, o coquetel de remédios para amenizar o pânico, o melancólico enclausuramento nos quintais.

Mas diante de um mundo com tantas razões para ser pessimista, queria escrever uma crônica de fôlego mais otimista, falando das coisas engraçadas que vi e vivi na minha rua. Queria falar do finado Papa-léguas, um velhinho que morava na minha rua e que costumava atrapalhar as nossas peladas. O apelido é de nossa autoria. Quando ele apontava a alguns metros de distância, um de nós sempre dizia desconsolado: “Ih... lá vem o Papa-léguas, pode puxar as travinhas pro canto e cochilar...”. E lá ficávamos a esperar durante meia hora o Papa-léguas cruzar monotonamente a rua, tateando lentamente sua bengala no chão. Parecia uma eternidade aquele momento, um verdadeiro suplício para aqueles meninos esfomeados por bola.

Mas vou parar por aqui, as aventuras do finado Papa-léguas podem esperar para um outro dia. Hoje quero ficar refletindo em torno dessa frase sem-vergonha do nosso ilustre Barão de Itararé, que dizia: “Este mundo é redondo, mas está ficando chato”. É... Talvez meu avô concorde.

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 21/12/2008
Reeditado em 16/02/2009
Código do texto: T1347244