SUICÍDIO COM ARMA LÍCITA
Naquela manhã ele acordou mais tarde do que era seu costume.
Levantou-se sem ânimo e parou na frente do espelho do banheiro...
Passou a mão no rosto e sentiu a barba crescida, mas não teve vontade de mudar isso. Atentou para os cabelos já bem grisalhos, os olhos vermelhos e a expressão cansada...
Uma tristeza profunda lhe veio no coração... Sentiu-se envelhecendo e estava só! Sua vida não tinha sentido! Todas as grandes aventuras que vivera se tornaram apenas casos interessantes com que distraía algumas pessoas que chegavam mais perto, mas nem eles eram capazes de fazê-las ficar...
Aquela péssima aparência parecia confirmar diante do espelho a sua crescente sensação do quão desagradável deveria ser a sua presença!
Tinha 48 anos de idade e um certo charme, mas nos últimos dias os anos pareciam ter passado mais rápido! Naquela manhã aparentava 60!
Aparou a água da torneira com a mão em concha e bochechou a boca. Cuspiu e fez uma careta ao sentir um gosto amargo ficar...
Observou os dentes brancos e grandes que exibia sempre quando estava rindo, o que sempre fora sua marca registrada, aliás... Todos implantados de porcelana, resultado de uma das perdas que conseguira com suas maluquices do passado, quando se achava corajoso para enfrentar situações perigosas pelo simples prazer de desafiar as convenções estabelecidas! Excelente profissional aquele protético! Tinha sido um bom trabalho e poucos notavam a imitação.
Desceu o olhar e percebeu o quanto estava magro.
Virou-se de lado e viu também a barriga crescida bem mais que o normal... Andava bebendo muito ultimamente!
Pousou a mão esquerda do lado direito do abdome e deu algumas batidinhas com os nós dos dedos da outra. O gosto amargo o fez salivar e cuspir outra vez.
Tinha de ir ao médico, lembrou. Aquele fígado estava dando problemas de novo!
Um calafrio percorreu seu corpo ao imaginar ter de ficar internado outra vez. Esse era seu maior medo!
Tinha tempo que deixara de freqüentar os Alcoólicos Anônimos e agora estava vivendo uma recaída perigosa. Seu conhecimento da programação lhe dizia que devia procurar o grupo, mas a vergonha pela sua fraqueza em sucumbir ao vício outra vez sempre o fazia postergar essa decisão.
Preferiu não ver que o dia estava claro e bonito. Não era bom olhar o céu e descobrir que estava azul e sem nuvens. Melhor não pensar mais em coisas tristes! Amanhã, quem sabe, ele faria o que fosse preciso...
Abriu o frigobar com as mãos trêmulas e olhou para as latinhas de cerveja que ocupavam todos os espaços. Rapidamente apanhou uma delas, estalou o lacre e virou quase toda no copo sujo, que deixara sobre a pia na noite anterior, bebendo em um só gole!
Logo uma sensação de plenitude o fez sentir-se melhor. Em poucos minutos esvaziou a segunda das mais geladas que encontrou. O tremor diminuiu e ele começou a se sentir bem.
Acendeu um cigarro, olhou para a cama mal arrumada e pensou na inutilidade de dobrar as cobertas. O largo moletom que usava também lhe pareceu adequado e não viu sentido em tomar um banho ou mudar de roupa já que não ia sair ou receber ninguém.
Não abriu as cortinas. Era melhor garantir que não incomodassem...
Ligou a TV e sentou-se no sofá com o maço de cigarros e uma nova latinha de cerveja em punho.
Gostava de ver noticiários ou programas científicos.
Deu um rápido passeio pelos canais que o sistema a cabo oferecia e parou em um programa sobre aeromodelismo. Aquele assunto o encantava e o fez se lembrar da infância e da sua paixão antiga pela aviação.
Aos poucos uma nova sensação de tristeza começou a perturbá-lo...
Sentiu saudades da sua juventude, das viagens pelo mundo, das aventuras, daquele trabalho que tanto gostava e dos amigos que perdera quando se viu forçado a se aposentar antes do tempo.
Bebia-se muito nas noites de espera pela escala de vôo em lugares distantes... Quem trabalha com pilotagem comercial internacional sabe como é: o tédio, os diferentes fusos horários, a constante distância de casa, da família, essas coisas... Apesar de tudo era bom, ele pensou, mas sua compulsão e as seqüelas que lhe trouxeram acabaram por impedir que continuasse.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo toque do interfone.
Era sua vizinha, a única amiga que lhe restara, querendo saber como ele estava, se tinha pedido almoço, oferecendo ajuda e tentando alertá-lo sobre sua atitude de estar bebendo mais do que devia.
Gostava dela e entendia que tinha razão, mas naquela altura do meio dia a última coisa que queria ouvir eram sermões sobre como deveria se comportar.
Mentiu para tranqüilizá-la dizendo estar bem e de saída e prometeu que mais tarde conversariam!
Remexeu na quentinha que sobrara do dia anterior e que deixara por esquecimento dormir sobre a mesa. Deu uma garfada e sentiu um nó na garganta que impedia o alimento de passar. Pousou uma revista sobre a embalagem de alumínio para servir de tampa e abandonou a idéia de comer alguma coisa.
Acendeu mais um cigarro, voltou para o sofá, bebeu mais umas cervejas e acabou cochilando.
Acordou minutos depois com o cheiro acre de plástico queimado. Era o controle da TV que estava no chão próximo ao sofá sendo queimado pela brasa acesa que lhe caíra bem em cima.
Xingou alguns palavrões, recolheu a guimba ao cinzeiro e tornou a dormir até o final da tarde.
Acordou com sede... Foi ao frigobar ainda sonolento e percebeu que as cervejas tinham acabado. Pegou uma garrafa de água mineral e bebeu pelo gargalo tentando aliviar o amargor daquela azia insistente.
A sensação foi ótima!
Mastigou algumas fatias de presunto defumado que encontrou ali e olhou em volta... Aquele apartamento era seu! Tinha comprado há 3 meses com o fruto das aplicações que fizera na bolsa. Gostava de riscos e conseguira fazer render bem alguma grana que recebera de herança do pai somada à sua indenização trabalhista.
Pelo menos isso ele salvara na vida! Nada mal para uma pessoa como ele, que ouvira um “amigo” dizer uma vez não ter problemas e sim, ser o próprio problema!
Foi ao banheiro e resolveu passar uma água no rosto.
Abaixou-se na pia e molhou também a nuca. Curtiu por alguns momentos o frescor da água e levantou o rosto enquanto procurava a toalha pendurada ao lado para se secar.
Olhar-se bem de perto foi inevitável!
Nossa, pensou, como estava acabado! Que rosto decrépito havia construído pra si em tão pouco tempo? Isso não podia continuar assim! No dia seguinte, sem falta, ia procurar ajuda!
Animou-se com aquela decisão e resolveu acender o globo terrestre que tinha na sala funcionando como abajur e ligar também o som.
Perdeu alguns minutos girando o atlas e lembrando-se de passagens vividas em outros países do mundo onde tinha estado, morado ou visitado na vida... Um meio sorriso desenhou sua boca ao notar que conhecia o mundo todo, tanto pela terra como pelo ar!
Apanhou uma das últimas 3 garrafas de whisky barato que tinha na estante e preparou uma dose com gelo para comemorar isso, enquanto seguia o ritmo da melodia blues que escolhera, ensaiando uma dança meio desajeitada.
Nascido em uma família de nível alto, falava 3 idiomas fluentemente, lia muito e era uma pessoa inteligente e espirituosa. Media 1,80m e podia-se dizer que era um homem bonito, mas naquele dia o peso da vida parecia grande demais para seu corpo já sem músculos.
Na segunda dose, resolveu esquecer o gelo e fazer um cowboy...
Ele bebeu as 3 garrafas de whisky naquela noite das 18 às 21 horas!
Meia dose antes de secar a última começou a se sentir mal e resolveu se deitar.
Cambaleou até o quarto, acendeu a luz e jogou-se em uma das duas camas de solteiro, separadas por uma mesinha de cabeceira, onde dormia.
Uma golfada de sangue com bílis cobriu rapidamente o travesseiro!
Assustado, se esforçou e conseguiu levantar, evitando ser sufocado pelo próprio vômito. Na tentativa, perdeu o equilíbrio empurrando a cama que rangeu até encontrar o armário. Avistou o celular sobre a outra e um certo pavor o fez pensar em ligar para alguém, mas já era tarde... e para quem?
Uma dor lancinante lhe atingiu o peito!
Sem suportar, caiu sobre o tapete lateral, com a mão no coração, atingido por um enfarte fulminante!
Foi encontrado 2 dias depois pela vizinha amiga, única que sentiu sua falta e, não conseguindo contato, chamou a polícia e providenciou para arrombarem a porta, se encarregando das providências para localizar e avisar a família, duas irmãs, um irmão, ex-mulher e uma filha de 15 anos, que nem ela nem ninguém ali conhecia ou tinha visto algum dia o visitar!
PS.: Ao meu vizinho e amigo querido, por quem aprendi a ter compaixão, mas fui impotente para salvar!