Lívia tem razão

Lívia tem razão, realmente não há nada mais aborrecedor do que essa coisa do sujeito sair perguntando quais são seus escritores favoritos, o estilo de música que você mais gosta e a cor de sua calcinha e/ou cueca. Dessas três perguntas, só tive o desprazer de fazer a primeira; a terceira pergunta não precisava, a calcinha era preta. Não sei se com bolinhas brancas ou listras na horizontal, mas era preta.

A respeito da calcinha, não tenho culpa nenhuma; todo mundo viu. Afinal, quem mandou vestir calça jeans com aquele cofrinho enorme? Mas não precisamos divagar em torno dessas amenidades; insistir nesse ponto seria comprometer a minha tão prezada reputação de bom moço. Agora, no que se refere às duas primeiras perguntas, Lívia tem toda razão, não há nada mais aborrecedor, nada mais irritante.

Nem contestei quando ela me confidenciou seu aborrecimento; queimei minha língua, reconheci a idiotice da minha pergunta, e imediatamente tomei partido de sua opinião, tornando-me um de seus mais eufóricos militantes. E suas razões foram, de fato, bastante esclarecedoras. Não podemos dizer que gostamos de um escritor X ou Y, mas, sim, de poemas X e Y de um determinado escritor. Realmente, tiro por mim: não posso dizer que gosto incondicionalmente de Carlos Drummond de Andrade. Gosto da esmagadora maioria dos poemas que escreveu, mas detesto “No meio do caminho”, por exemplo. Não há, em toda obra do poeta, poema mais detestável, fastidioso e irritante do que “No meio do caminho”.

O próprio Drummond admite isso numa de suas entrevistas, se não me engano publicadas no livro “Confissões no Rádio”: num determinado momento da entrevista o poeta diz “... sou autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais”.

À época que publicou esse estranho poeminha, na Revista de Antropofagia, não faltaram críticas, sobretudo pessoais, em cima do tímido poeta municipal. Xingaram-no disto e daquilo: “obra de débil mental”, “um monumento à imbecilidade”, e nem sua pobre mãe, dona Augusta Drummond, saiu ilesa da fúria que se apossou da língua e da pena dos poetas parnasianos. Hoje, tempos mais amenos, com Drummond já consagrado, não faltam nesta república almas pedantes que defendam com unhas e dentes o poema, encontrando nele um milhão de significados disparatados, indo além, muito além daquilo que seus versos sugeriam; no final das contas o que presenciamos hoje é uma verdadeira aventura astronômica no campo da teoria literária.

Os achados são coisas do tipo: “a pedra no meio do caminho é um irresoluto problema ontológico-existencial de ordem metafísica que assaltou o poeta num determinado momento de sua vida...”, “a pedra é um amor não realizado”, “a pedra é isso, a pedra é aquilo...” Paciência!... Quantos séculos serão necessários para que os homens se conformem com a idéia de que aquela pedra não passa de uma pedra, uma pedra-pedra?

Mas como em tudo nesse mundo há controvérsias, nesse caso não poderia ser diferente. Stéphane Mallarmé, por exemplo, diria que essa pedra nem pedra é. Aliás, que a pedra do poema é uma coisa e a pedra que designamos é uma coisa totalmente diferente. É famosa sua indagação: “que flor jamais poderá ser encontrada dentro de um vaso?” Resposta: a flor do poema, que aí se encontra transfigurada em linguagem, matéria gráfica e sonora, descartando o seu sentido denotativo, isto é, que indica um determinado objeto. Mallarmé poderia dizer o mesmo sobre a pedra, que na poesia de Drummond aparece de maneira repetitiva e monótona, de maneira a irritar qualquer leitor nos domínios de sua saúde mental e emocional.

À segunda pergunta, Lívia não hesita; em vez de procurar enumerar uma infinidade de estilos musicais que gosta, responde logo na lata: “Gosto de MPB”. Dessa maneira julga encerrar qualquer conversa chata com uma única resposta.

Mas, afinal de contas, que diabos é MPB?

É o sujeito sentar-se num banquinho de pernas cruzadas, a tocar violão, reclamando do acústico, dos cochichos da platéia e do gosto da água? Não, esse é apenas o João Gilberto. Ou MPB é o sujeito cabeludo com uma guitarra elétrica, com o palavrão na ponta da língua, a soltar cachorros contra todos os entusiastas da bossa-nova? Não, esse é o Lobão. Como se vê, dois ícones da música brasileira, dois artistas de concepções e estilos musicais totalmente distintos - Bossa-Nova e Rock ’n Roll -, mas ambos metidos num mesmo saco terminológico: “Música Popular Brasileira”. Afinal, qual é o critério para dizer o que é e o que não é Música Popular Brasileira? Vamos fazer como fez Mário de Andrade, ao dizer que “conto é tudo aquilo que chamamos de conto”? Bem, isso serviu apenas para dar uma pálida idéia de como essa coisa é confusa.

Acontece que quando dizemos que gostamos de MPB não estamos dizendo absolutamente nada, de tão vaga que é essa resposta. Mas se é pra encerrar qualquer assunto chato, façamos como Lívia, e digamos: Gosto de MPB e ponto final".

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 21/12/2008
Reeditado em 25/12/2008
Código do texto: T1346211