RAZÃO

Se a razão, método humano de conhecer, não nos fosse pelo menos um bom método, estaríamos sãos em optar por não prosseguir esta discussão. Porém, a mesma atitude seria tomada com base na razão. Se escolhêssemos não pensar, o mesmo. Mas, ora, se nos guiássemos pelo sentimento e optássemos por coisa determinada em detrimento de outras (como não optar em detrimento de escolher algo), de que forma senão a racional avaliaríamos ser certa ou errada tal opção?

Não será uma única pessoa que dirá: “– Mas não se deve julgar por certo ou errado, nem sequer julgar.” Bom, se não se julga, também não se pode dizer absolutamente nada sobre a validade de um método de conhecimento. Daqui, uma ironia, pois que o julgamento da própria razão como válida, ou de qualquer coisa, não é nada mais que racional! Entretanto, ao contrário do que se pode pensar, isso não é uma unilateralidade de quem defende a razão, mas uma atribuição direta e inelutável da razão.

Ora, os julgamentos mais corretos versam pela imparcialidade. Se você ajudar uma senhora a atravessar a rua, sob o consentimento dessa mesma, e eu lhe condenar à cadeira elétrica por tal motivo e à minha amante – olhos castanhos, bons lábios e muitos prazeres a dar, mas que agiu como você – aplicar a dura pena de ligar o interruptor que o fritaria, somente porque o meu coração o diz? Você acha uma coisa; eu, outra – o que é a justiça? O acordo. E ele não é senão algo imparcial relativamente às partes que o assinaram.

O acordo, em si, é uma composição de preferências ou de concepções racionais. Se, baseado no acordo, tomo uma decisão, cabe a mim convencer de alguma forma o signatários de que aquilo está consoante o contrato. Se aceitam, todos, que o contrato assinala que nenhuma das partes está sendo beneficiada demais, – pelo em relação aos signatários –, já se deduz que, de alguma forma, essa imparcialidade pode ser aumentada cada vez a um grupo maior. E mais, afirmo: ela chega a um ponto tal que se torna, de fato, totalmente imparcial.

Disso decorre que existe a verdade. Existe mesmo, mas o provarei depois. Importa-nos que, claro, se digo haver uma imparcialidade tamanha que seja deveras imparcial, devo supor que ela baseia-se numa universalidade. Mostro, ainda, que esta grande coisa é indiferente a opiniões. Concordem comigo que, se nós dois (eu e minha amante) seguirmos em direção seguirmos em direção a um gigante bloco de folhas (nas quais esse texto estará escrito!), vamos, com toda certeza, bater-nos nele. Não?

Parece sem nexo? Por mais que o coração alguém de fora diga que não havia algo em que batemos o rosto (juntos, de modo muito romântico...), confirmamos que mente, não por acharmos isso, mas, superando esta base, porque aquele mentiroso também quebraria o seu nariz se fosse correndo em direção àquele bloco hipotético. Então, julgo eu e minha lindinha [e posteriormente o Pinóquio (já sem nariz)] que, de fato, é verdadeira o efeito de bater naquele montão de folhas se se caminha em sua direção.

Uma velha objeção – de cunho idealista – já aí está derrubada.

Contudo é comum se pensar, e dizer imediatamente: “– Mas, embora seja verdade que todos sintam doer a cartilagem de seus narizes, esta verdade só é relativa a eles mesmos, pois um fantasma cego que passasse pelo bloco não sentiria nada. Como não sentiria, afirmaria não existir...” Diante disso, pergunto ao leitor, tudo que existe você sente?... Bom, seria assim se minha amante dissesse, em quarto aninho de vida, por iniciativa própria, que sentiu os elétrons no seu corpo quando pôs o dedinho na tomada.

O que é verdade, é que, primeiro, há coisas que existem, porém seus efeitos só supõem a sua existência quando investigamos – e aí se emprega a razão –, em segundo lugar, para diferentes seres e coisas os efeitos do que existe são diferentes (diferença grande, que vai até o efeito nulo, claro). A luz nos sensibiliza de uma forma; para os vegetais, que nem a vêem, de outra; no entanto a luz é luz.

Que os vegetais sentem de uma forma e nós de outra, e que a luz tem certas características, não fui eu nem você (nem minha amante) nem a razão quem inventou... Pois a razão não é magia, mas uma sistematização do que percebemos de imediato na natureza. A razão nasce da nossa capacidade de conhecer a natureza (as coisas e as próprias idéias), o que, ao longo da vida e da história aprimoramos... Se deduzimos algo, defrontando-se com a realidade vemos que podemos sim acertar.

Quanto à afirmação de que a verdade não existe? Relativismo bobo. Filosofia modista. É uma contradição dizer “a verdade não existe” como se fosse uma Verdade, não é? A verdade é sempre relativa ao que se afirma, mas ela existe sim. Portanto, o máximo da imparcialidade no julgamento que permite afirmar válida ou não tal coisa é aquele ato de conhecer nascido das próprias coisas a que se pode conhecer. Ou seja, para o conhecimento, viva a razão!