CARNE DE SOL
Dizem que Montes Claros tem as melhores coisas do Brasil: a farinha de Morro Alto, a cachaça de Salinas, o pequi de Japonvar e a carne-de-sol de Mirabela. É claro que isso tudo é dito de forma bem humorada, nas rodinhas de prosa, entre um gole e outro de cerveja, nos lusco-fuscos calorentos da cidade.
Com relação à carne-de-sol, todavia, há uma grande injustiça. Nenhuma chega perto à de Porteirinha. Você pode até achar que isso cheira a bairrismo, leitor amigo. É que você não nasceu por lá, como eu, e talvez nunca tenha tido a oportunidade de degustá-la.
Em Montes Claros, há a famosa carne-de-sol serenada do João Maia, divulgada em "out-door" como a melhor do Brasil. E, de fato, é excelente. Mas alguém aí sabe onde ele aprendeu a técnica que guarda sob sete chaves? Não? Com um açougueiro de Porteirinha. E foi o próprio João Maia quem disse isso em uma entrevista à televisão, que assisti com uma ponta de orgulho.
E me arrisco a dizer o nome do açougueiro, em duas tentativas: se não foi o João Caires, foi o Du. Ambos preparavam excelentes mantas de carne de sol e as vendiam em seus açougues no interior do Mercado Velho de Porteirinha.
Mas para não dizerem que falo sem provas, vou dar o testemunho do cronista Alberto Deodato - que começou sua carreira como promotor de justiça em Rio Pardo de Minas - em belo artigo publicado no "O Jornal", do Rio de Janeiro,em 10 de setembro de 1968. Segundo ele, Porteirinha "é uma cidadezinha encantadora com sua igreja bonita, suas praças de jardins tranqüilos e sua gente acolhedora. Fica na estrada sertaneja que acaba
em Espinosa, vindo de Montes Claros. Mas o que há de extraordinário em Porteirinha é a carne-de-sol. A melhor do mundo. Quando digo mundo, é o mundo do sertão."
Como vêem, não exagerei ao dizer que a carne-de-sol de Porteirinha era a melhor do Brasil. O insuspeito e saudoso cronista Deodato a classificou como a melhor do mundo! Mesmo que seja o mundo do sertão, pois noutra parte não é encontrada.
Pois bem, após fazer uma digressão sobre a diferença entre jabá e carne-de-sol, aquela com preparo industrial e esta totalmente artesanal, o velho cronista - autor de belas obras e ex-professor na Faculdade de Direito da UFMG -, continuou a falar, agora do preparo da carne-de-sol:"Esquartejado o animal, a carne preciosa, destrinchada em mantas, ia pra
salgadeira, com camadas de sal grosso, depois estendidas nos varais, em frente da casa. Para os longos dias de sereno. Mal a manhã surgia, a carne era recolhida, apesar de se chamar de sol, o grande artífice é o sereno."
Mas para ele, especial mesmo é a carne de dois pêlos, "aquela manta de lombo ou contrafilé entre duas lambadas de gordura. (...) Pois foi essa, meus leitores, que os meus amigos de Porteirinha, o Anísio e os seus irmãos, me mandaram. Comi-a a semana toda que passou. Com farinha e banana, molho frio, de vinagre e cebola graúdas. Comi-a sentimental e civicamente. Sentimental, porque parecia estar na terra nordestina onde nasci, sol a pino, de camisola, à beira do riacho claro, saboreando as lascas, jogando a farinha na boca e bebendo água que corria com as mãos em concha. Civicamente porque foi com uma nesga dessa carne e uma capanga de farinha que o sertanejo a pé, atravessou esses sertões brasileiros escaldantes e agressivos, construindo esta pátria."
Isso tudo, minha gente, foi escrito em um jornal do Rio de Janeiro. Preciso dizer mais alguma coisa?
Preciso sim: conheça a carne de sol de Porteirinha. A cidade fica a apenas 160 km de Montes Claros ou a 35 de Janaúba. Ali você vai encontrar muitos açougues que vendem a preciosidade. A maioria das casas de carne fica no próprio mercado municipal, logo na entrada cidade. Depois, é só degustá-la, sentimental e civicamente, como fizera o cronista Alberto Deodato, no final da década de 1960. Mas com moderação, para degustar sempre.