Estranho corpo
Após alguns goles estavam na cama. Ela era a típica mulher para um jovem de classe média, trabalhador e honesto. Ela era rica, vivia bem e alimentava o sonho de sair um dia do país. Ele queria ficar e vencer. Gostava da imprensa. Contribuía em jornais de terceira linha. Com certeza um dos períodos mais rudes da sua vida.
Ficaram juntos numa festa embalada. Ele se mudou do apartamento emprestado para a casa dela. Eram felizes a Henry Miller. O fato de viver longe dos recursos cavava um abismo entre eles.
Por incrível que pareça estava amando. Amando uma mulher feia, porém requintada. Amava a inteligência viva de detalhes rápidos. Tinham isso em comum, além dos livros e filmes. Intelectualmente se dava o luxo de amar uma mulher feia, mas de fino trato. Nessa época começava a escrever as primeiras linhas da obra que ficaria esquecida: “Aquele Dia”. Afinal, não se publicam pobres neste país.
Ele escrevia enquanto ela sumia para o divã do doutor Pires. Desejava viver no exterior. Faria qualquer coisa para sair do Brasil. Todos os intelectuais saem do país para serem melhores. Ele por sua vez havia decidido que não iria. Procuraria vencer aqui mesmo antes de sair. Sabia que lá longe ela receberia dinheiro de sobra dos pais, e ele lavaria cadáveres para sobreviver. O subemprego era garantia de vida para estrangeiros desprovidos. De qualquer forma tudo ia bem e o amor das diferenças parecia existir.
Tudo mudaria em apenas um dia. A insistência em se mudar lembrava as fugas do período da ditadura, mas estávamos em paz.
Foi naquela triste manhã ensolarada. Ele estava só na cozinha. Ela apertando a barriga pedia-lhe uma canja leve para o almoço. Estranhou as contínuas idas e vindas ao banheiro. Estava pálida, quase desmaiando.
- A ginecologista receitou este remédio, disse. Olhou a bula e notou que era abortivo. Ela confirmou. Devia estar com três meses.
O psicanalista puxou-lhe as orelhas sobre a unilateralidade do gesto como ela puxou a descarga da descendência. Ele devolveu o silêncio com silêncio, afinal viajar para a Europa era importante. Nunca mais lhe dirigiu uma palavra sequer a sensível e recalcitrante escritora. Afinal tratava-se na época de um vagabundo. Um estranho que vivia em sua casa e colaborava em jornais de quinta categoria. Há vezes em que dá vontade de ser milionário, para tocar no passado das diferenças com justa igualdade. Para ela não se tratava da simplicidade do companheiro, mas da excelsa vontade de conhecer à Europa. Afinal, é preciso separar a vida da obra.
Ser intelectual é muito importante neste país. Mas só depois de ter passado pela Europa.