Leite de coco
Cissa de Oliveira
para a Rosa Pena
Eu ia fazer as unhas e saí o mais cedo possível, algo em torno de sete e quarenta, assim chegaria com considerável folga de horário ao Salão de Beleza e, com sorte, a primeira manicura que aparecesse me atenderia. Bem sei que o horário, por vezes, já está marcado, mas arrisquei. Morar perto do centro é uma dádiva, ainda mais se há um túnel de pedestres que em dez minutos te põe no "centrão", e, por causa disto, às vezes abuso e vou sem marcar horário, e caminhando.
O clima estava ainda bem fresco, e desci a 13 de Maio observando os vendedores às portas do grandioso intrincado de lojas populares, a maioria ainda fechada. Os vendedores, onde morariam? – eu ia me perguntando, na condição de vizinha do grande centro. A doze dias do Natal, possivelmente havia um necessário excedente de trabalhadores no comércio, e concluí que esta era a explicação para tanto vendedor às portas das lojas, alguns sentados aos batentes. Mais para o meio da rua, em correnteza esparsa (como se as pedras do calçamento fossem daquelas um tanto pontiagudas, que dão graça e algum movimento à superfície das águas dos rios), outras pessoas também seguiam. Algumas, possíveis clientes querendo ganhar tempo. Os demais, como eu, somente Jesus é quem sabia.
Em poucos passos atravessei as duas vias da Senador Saraiva, e desci três quarteirões, já descobrindo as promoções que os estabelecimentos deixavam à entrada tão logo abriam as portas. Mais abaixo, a vitrine das Lojas Renner estava lindíssima, e até diminuí a marcha, mas logo a volta ao caos se deu, graças à presença de uma mulher que, entre uma montanha de bolsas sobre a lona gasta, arriscava dar ordem àquela coisa toda, que mais parecia comércio de camelô – o que de fato não existe na 13 de Maio.
Sem mudar o ritmo, atravessei o pequeno largo, uma espécie de praça de alimentação. Minúsculos quiosques, com seus balcões e enxames de abelhas sempre a rondar. Por ali, o mesmo fazem os pombos e as prostitutas – alguma daquelas travessas eu sei que é a chamada “rua das prostitutas”, o que me surpreende, porque todas as ruas por ali me parecem tão iguais na sua agitação, casario, prédios, comércio e gente pra todo o lado.
"Um dia eu vou escrever uma crônica e citar que atravessei a rua das p....! Eu vou dizer! Vai ser assim...". E fui ensaiando, escrevendo e consertando, com um corretor imaginário, como haveria de ser a crônica. Sei lá por que cargas d’água me pareceu interessante que desta estapafúrdia frase nascesse uma crônica daquelas que fazem o leitor arregalar os olhos, soltar uma risadinha surpresa ou apenas movimentar os lábios num sorriso contido de quem lê o inacreditável em meio ao público, como era o meu caso naquele instante, que não lia, mas imaginava. Depois repensei: e se eu escrevesse apenas “rua das p”? Capaz que... E se eu fizesse uma parceria com a Rosa Pena, a minha amiga escritora lá do Rio de Janeiro? Ela tem licença poética para ser desbocada e debochada sem perder a elegância ou parecer preconceituosa. Nessa altura eu ri ainda mais, embora segurasse a risada alta. E se eu entrasse na catedral? Lá ao menos eu poderia rir sozinha. Poderia, não poderia, Querubim do Telhado da Conceição?
Observei de soslaio; sim, ele ainda estava lá, juntamente com a inseparável trombeta. Ele não deu ares de me reconhecer – afinal, já nos víramos com mais intimidade, desde o dia em que eu o fotografara no mesmo e exato canto do telhado da igreja matriz –, e muito menos de entender a minha dúvida estapafúrdia. Passei direto.
A catedral, centenária e impávida como o anjo, não parecia ciente de nada. O friozinho da manhã já ia longe, e eu deveria ter gasto bem umas cem calorias na caminhada. O pensamento me agradou. Quem sabe se eu não conseguiria perder quatro quilinhos até o Ano Novo? Ah... Dois quilos, que seja. Num minuto eu estava na Rua José Paulino. Subi um quarteirão e pronto, mais alguns metros à direita e a visão do Salão de Beleza se fez.
As manicuras ficam no segundo andar, e, na escada, fui planejando a cor do esmalte. Seria claro, muito claro. “Já sei, usarei o ‘leite de coco’, que, com as unhas bem feitas, deixa os pés com aspecto de escultura de mármore branco e as mãos com a faceirice inocente das flores claras no vaso de vidro do altar da igreja. Mas que eu vou conversar com a Rosa Pena, lá isso eu vou”.