Repentinamente, ante meus olhos surpresos, elas estavam lá displicentemente penduradas num fio de eletricidade, como um velho e descartado objeto abandonado em qualquer lugar por imprestável. E por que razão me chamou tanta atenção naquele momento? Explico: era, imagine só, simplesmente um velho par de chuteiras sujas e enegrecidas, já estragadas como é óbvio, rotas e burlescas a servir de gritos e apupos para quantos as avistavam naquela posição de abandonadas e desprezadas. Eu mesmo, confesso sem o menor constrangimento, não me contive ao deparar com aquele quadro nada usual e ri quando as vi ali expostas, nessa tosca situação degenerante, balançando ao vento, presas por um único fio ensebado, deixando no ar tantas interrogações sem nenhuma possibilidade de resposta plausível. E ao avistá-las, o esboçar de sorriso brotando em meus olhos, embora expressando por inteiro um risinho franco e debochado por todo o rosto, quedei-me a me perguntar a quem teriam pertencido, por onde teriam andando nos bons e velhos tempos, por quantos anos serviram de conforto e proteção para alguém que as usou até torná-las inservíveis, troços imprestáveis, vulgares, destinadas, como tudo que não presta para mais nada, somente ao lixo e ao esquecimento.

Ora vejam só! Lá estavam elas jogadas de maneira jocosa à indiferença e à execração, talvez, penso, à espera de uma decomposição demorada, expostas ao ridículo paulatino, afora deixando entrever a possibilidade de causar algum dano sério à rede elétrica da cidade. Quem será que teve a nada convencional idéia de as pendurar naquele fio de eletricidade?, eu me perguntei perplexo com a atitude inusitada. Fiquei a matutar com os meus botões sem ter qualquer convicção de uma resposta plausível para aquilo. Tinha o cara algum objetivo que não o de apenas fazer humor e zombar do convencional? Certamente desejara ser notoriamente engraçado, sutilmente cômico e brincalhão, quanto a isso não tenho a menor dúvida. É bem provável essa hipótese, quero crer. Talvez, sim, é claro, talvez não. E voltei a indagar-me enquanto as chuteiras dançavam a música soprada pela brisa: quisera ele, ou ela, quem sabe, expor sua própria miséria, sua falta de algum argumento mais forte que resultasse num protesto expressivo? Sim, porque esse gesto ostensivamente burlesco pode ter sido resultado de algum recalque que magoa, uma humilhação impiedosa sofrida ou simplesmente um mero desabafo por razões desconhecidas pela própria razão.

Sabe lá o que se passou pela cabeça desse desconhecido personagem que teve a inusitada idéia de pendurar as chuteiras de uma forma nada convencional. Sujeito insano ou gaiato? Difícil determinar a definição adequada para ele. Bom, mas até que ficou bem cômico e a chamar realmente a atenção de quantos passam pelo local. A cena estapafúrdia com certeza provoca alta dose de bom humor nas pessoas. Há até quem jogue pedras nas chuteiras tentando derrubá-las somente para ver a queda.

Ah, já ia quase esquecendo e esta cronica permaneceria incompleta: essa cena um tanto dantesca e meio que mirabolante, absurda mesmo, acrescento, presenciei e fotografei num domingo passeando em Curitiba, nas proximidades do badalado Shopping Barigüi. Era dia de muita gente ir bater pernas no shopping e havia bastante movimento de pessoas em derredor indo e vindo feito formigas sem qualquer noção de rumo. E lá elas, as chuteiras, permaneceram penduradas à guisa de enforcadas e ao ritmo interminável e desconexo do vento suave, servindo de chacota para uns e de espanto para muitos. Quando as olhei pela última vez, minhas células cinzentas alertaram que em boa hora o acontecimento poderia render uns rabiscos, provavelmente uma mensagem hilariante para o gáudio de alguns ou essa espécie de crônica popular capaz de fazer brotar sorrisos nos meus poucos mas diletos leitores. Então não me fiz de rogado e, ao chegar ao hotel, liguei o notebook e deixei-me vagar entre as ondas dos vocábulos e peguei-me rindo solitário à medida que ia tomando corpo o esboço deste artigo despretensioso. A foto das chuteiras penduradas me dá razão para rir e fazer rir. Alguém tem dúvida?
Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 18/12/2008
Reeditado em 22/07/2010
Código do texto: T1342244
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