Ainda acabo com esse gato
O avô acordou sobressaltado. O barulho de alguém mexendo nas suas latas – latas de cerveja, de refrigerantes, de sucos de fruta, de óleo de cozinha, buscadas todo dia, o dia todo.
Virou-se para o outro lado para se acomodar melhor e retomar o sono. Ninguém entraria de madrugada em casa alheia para roubar latas velhas, sujas, amassadas.
O barulho voltou de modo regular. Riu. Perguntou-se novamente quem se interessaria por latas velhas, sujas, amassadas.
Para espanto da esposa, deu um pulo. Certamente. Sem dúvida. Outro catador de latas velhas, sujas, principalmente amassadas. Facilitaria seu trabalho.
Enquanto pensava, de cuecas e de pé ao lado da cama, o neto entrou, olhos alarmados, indicando por gestos e caretas a presença de alguém na varanda. Antecipando-se à pergunta do avô, assegurou os dois irmãos menores dormirem.
Na ponta dos pés, o avô passou o braço em cima do guarda-roupa. Mexeu. Remexeu. Encontrou um facão.
O neto, até então desconhecia a existência da arma e do esconderijo, arregalou os olhos. A segurança ao ver o avô em pé cedeu lugar ao medo que sentira quando se acordara.
O avô não tinha mais vinte anos. Apesar da coragem e da macheza, os movimentos limitados, pela idade e pela falta de exercícios, comprometiam quaisquer projetos de defesa do pequeno patrimônio ou da família.
Frio na barriga desencorajava o menino que quase proibiu o avô de se aproximar da janela.
O avô olhava, mas não via nada. A luz da lua cheia expirava na varanda ao fim da qual o larápio, calmo e concentrado, retirava as latinhas das caixas de papelão e as jogava no saco.
Se ligasse a lâmpada externa, o ladrão fugiria antes que ele destrancasse a porta.
Chamou o neto. Assim que acenasse, ligasse a luz. Seria o tempo de se plantar no corredor.
O avô destrancou cuidadosamente a porta, mas sentiu uma frieza nas batatas das pernas. Deveria fazer mesmo isso? Eram apenas algumas latas. Velhas. Sujas. Amassadas.
Refletiu sobre a desistência. Porém, a lembrança da covardia na memória do neto jamais se dissolveria. Eram latas. Sujas e velhas, mas amassadas por ele com muito trabalho.
Respirou, controlou a tremedeira, acenou para o neto.
A luz acendeu-se, ele correu para a varanda gritando e empunhando o facão. O inimigo pulou de corpo inteiro, golpeando suas faces.
Levantando-se dolorido do chão, prometeu a esposa que daria fim naquele gato. Ah, se daria...
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 11 de dezembro de 2008.