O dia que eu fui Manuel Bandeira
Infelizmente não é todo o dia que somos Manuel Bandeira. Se eu fosse Manuel Bandeira teria o privilégio de compor poemas em sonho, o dom de descobrir a poesia nas coisas mais simples e menos intencionais; possivelmente adivinharia a poesia nos becos, nos subúrbios de Ceilândia, nas prostitutas do centro de Taguatinga, no pregão do camelô que passa na minha rua, no pardalzinho, na Estrela da Manhã, no meu pão de cada dia... Mas não sou Manuel Bandeira e o cotidiano me esmaga qualquer lirismo na sua toada rotineira, com suas burocracias e seu triste comércio.
Se ao menos eu fosse amigo do rei, iria embora daqui, me mandaria pra Pasárgada. Mas o rei sequer me conhece. E é com pesar que vou reconhecendo na minha prosa furada que não sou Manuel Bandeira, não lhe sirvo nem para tapete estropiado. Perdoai-me, sou cronista menor.
Mas fui Bandeira um dia, e conto-lhes como foi. Esse acontecimento espetaculoso, o dia que eu fui Manuel Bandeira, se deu na I Bienal Internacional de Poesia de Brasília. Fazia um calor excessivo àquela noite, e eu estava eufórico, afinal conheceria o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, que fora convidado para fazer uma palestra em que falava sobre a morte da poesia. O lugar era o Museu Nacional, mais uma dessas obras-primas de Niemeyer: uma meia-lua sobre o planalto, como dizem alguns. Coincidentemente, eu levava na minha bolsa um dos livros do Affonso Romano, se não me falha a memória o livro se chamava “A sedução da palavra”, uma seleção de pequenos ensaios e algumas crônicas.
“Como você conseguiu esse livro?”
Perguntaria ele mais tarde, quando fui lhe pedir com mais uma dezena de pessoas alguns autógrafos:
- Consegui com uma amiga. Uma professora dela emprestou para ela e ela me emprestou. Por que, Affonso? - Perguntei-lhe, arriscando alguma intimidade:
- Esse livrinho foi muito mal distribuído, Alex; poucos volumes foram publicados. Mas me diga aí, qual o nome de sua amiga?
Disse-lhe o nome, e lá foi ele, com aquela generosidade dele dedicar com uma “caligrafia não tão generosa” o seu abraço à minha amiga na contracapa do livro: “Gisele, um abraço do Affonso Romano de Sant’Anna”.
Ele também dedicou um autógrafo para mim, mas isso só conto depois. Antes devo narrar-lhes o breve percurso que me levou até o poeta e como passei a ser Manuel Bandeira. Quanto à palestra nem preciso dizer muito, apenas que foi inesquecível a parte que coube ao Affonso: provou-nos por A+B que a poesia continua viva, lembrou-nos Homero, Rimbaud, Carlos Drummond de Andrade, ironizou os coveiros da poesia, e arrancou aplausos da platéia com alguns versos que anotei na minha agenda, e que diziam mais ou menos assim: “Na poesia o nada se perde, o nada se cria, o nada se transforma.”
Devo confessar que quem me lembrou os versos foi o Carlos, um amigo que me acompanhava nesse dia. Foi a ele também que comentei com entusiasmo sobre algumas crônicas do livrinho que levava na bolsa. “Carlos, o Affonso é de uma perseverança singular. Você acredita que ele continuou a escrever poesias mesmo quando o Bandeira lhe disse gostar apenas de uns três versos?”. “Como assim?” - perguntou-me, com espanto.
E lá fui eu contar ao Carlos aquela crônica que li no livro do Affonso:
- O Affonso contava uns 17 anos, se não me engano. Era apenas um desses escritorezinhos com algum prestígio municipal, que tinha de seus apenas algumas publicações em jornais e um punhado de poemas reunidos em caderninhos. A glória literária lhe bateu a porta quando o seu irmão lhe arranjou um encontro com o poeta Manuel Bandeira. Era a oportunidade de sua vida. O poeta-mestre estabeleceu as condições: deve-me trazer entre os teus poemas pelo menos um soneto. Dessa forma ele certificaria se o poeta-pupilo escrevia versos livres porque tinha competência ou porque não tinha peito para o verso metrificado. Lá foi o jovem poeta levar os seus versos ao monstro literário, incluindo aí o soneto. Ficou alguns dias esperando a resposta do poetão, e quando menos esperava chegou-lhe em forma de carta. Numa severidade assustadora, Bandeira dizia mais ou menos assim: teus poemas são ruins, ao todo gostei de três ou quatro versos. A resposta foi curta e grossa, coisa de dez linhas. Mas, ao contrário do que podíamos esperar, isso não desanimou nosso jovem discípulo – muito pelo contrário – tomou a crítica de Bandeira como um elogio, afinal, se o poeta, o grande poeta Manuel Bandeira gostou de três versinhos seus, é porque ele não era tão mal assim. E continuou em frente, esperançoso, e hoje está aqui, esse monstro literário dando palestras. Um medalhão.
- Achei você admirável Affonso. Não sei como reagiria caso me fizesse uma crítica dessas.
Ele sorriu, enquanto autografava na minha agenda: “Alex, o abraço meu e do Bandeira”
Fiquei na maior saia justa quando ele me pediu para contar a crônica que narrei ao Carlos. Trazia-me pelo ombro para o canto onde lhe chamavam, e eu ia lhe recordando a história. Quem visse de longe pensaria que éramos amigos de longa data, e eu me sentia o privilegiado da noite, um palmo acima dos pobres mortais. Até que chegou a sua vez de palestrar: “daqui a pouco nos falamos, Manuel Bandeira”.
Se eu fosse o Affonso, pensaria duas vezes antes de pronunciar o santo nome do Poeta em vão. Como ele ousa me chamar de Manuel Bandeira? Se ele tivesse visto o que escrevo... Dos meus versos nem comento. Já minhas crônicas, estas não passam de frustradas tentativas de imitar, no estilo, os meus escritores favoritos. Mas graças a Deus! - seria o caso de dizer – que minhas tentativas são frustradas. Talvez resida justamente aí, nessa frustração, o pouco da originalidade que elas respiram. Ora, mas quem sou eu para contrariar o homem? Se Affonso, o grande Affonso Romano de Sant'Anna, me chamou de Bandeira, então é porque eu sou o Manuel Bandeira, e ponto final. Naquele momento, ter sido chamado de Manuel Bandeira pelo Affonso Romano foi minha glória literária. Minha doce ilusão. E foi ostentando humildade que desfilei entre os meros mortais.
Com a palestra encerrada, fomos todos para fora do Museu, onde vendiam cervejas e salgados. Nesses entremeios fiquei conversando com uma baiana super gente-boa que me falava da frieza das pessoas de Brasília, e da admirável simpatia do Affonso. Ela estava ali atrás do poeta, para conhecê-lo melhor. Fazia meses que o acompanhava, viajando pelo Brasil: “Estou escrevendo uma tese de mestrado sobre a obra dele”. Contava-me também que o Affonso era um cara super gente-boa, muito bacana, simples, atencioso. “Um cara que sempre escuta a gente”. A nossa conversa seguia de maneira agradável, quando o poeta discretamente se despedia dos fãs que lhe cruzavam o caminho. Não notaríamos sua passagem se ele não me gritasse no meio da multidão:
- Ei, Bandeira, até mais!
Ao que acenei, comovido:
- Até, Affonso, até...
E lá se vai o meu humilde discípulo... Vai Affonso, vá embora pra Pasárgada!
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