A VIAGEM... QUE VIAGEM!
O bilhete foi comprado. Da capital para o interior, três horas de viagem. Rumo à estrada me mandei embora. Uma viagem longa. Me muni de um livro e uma revista. E do lado claro, uma caixinha de isopor cheia de cerveja.
Entrei no ônibus, os motores roncaram, me acomodei, abri a cerveja e comecei a ler a revista... De cara, uma entrevista com o meu ilustre conterrâneo: Ariano Suassuna. Ah, a viagem começou bem aventurosa e sábia. Mas aí, o ônibus foi lotando, e lotando, a catinga de cana dos bêbados subindo, a sovaqueira pairando pelo corredor do ônibus e os passageiros que não paravam de peidar... Eu acho que era um gordinho da poltrona duas à frente da minha... Eu percebi, o gordinho não soltava o bolo da moça que carregava à mão. E pra completar, vem um menino subindo e aquela mãe gritando: devagar sinvalzinho, devagar sinvalzinho!
E eu com Ariano Suassuna. O entrevistador perguntou, não com essas palavras, mas com esse sentido, qual o limite entre arte popular e arte erudita. Na bucha, disse o grande Ariano Suassuna, que acha que esse limite nunca existiu. O limite que existe é entre a arte boa e ruim. De cara o aplaudi em tom alto. Os passageiros do ônibus, aplaudiram também. Ah... Eu já estava na quinta cervejinha, a cabeça não era a mesma. Os passageiros também não. Desceu uma gostosa que estava ao meu lado e sentou uma velha que reclamava até da nota de cinquenta reais que trazia à mão. E a mãe, na verdade a filha da mãe, lá na frente: "fica quieto sinvalzinho; sinvalzinho, menino, não perturba tua irmã!"
Soltei a revista e peguei o livro que levei para reler: “as flores do mal”. De Baudelaire. Como já ia na oitava e ultima cervejinha só consegui terminar o primeiro poema do livro, que por sinal é o que eu mais gosto, intitulado: AO LEITOR. Assim dizia:
Sempre tolice e erro, culpa e mesquinhez
Trabalham nosso corpo e ocupam nosso ser,
E aos remorsos gentis, nós damos de comer
Como o mendigo nutre sua sordidez.
Frouxo é o arrependimento e tenaz o pecado,
Por nossas confissões muito é o que a alma reclama,
Voltando com prazer a um caminho de lama,
Crendo lavar as manchas com pranto amaldiçoado.
Junto ao berço do mal é satã trismegisto,
A nossa alma a ninar tão longamente invade,
Do preciso metal desta nossa vontade
Este alquimista faz um vapor imprevisto.
É o diabo que nos move através de cordéis!
O objeto repugnante é o que mais nos agrada;
E do inferno a descer sempre um degrau da escada,
Vamos à noite errar por sentinas cruéis.
Tal como um libertino que beija e mastiga
O seio enrugado da velha vadia,
Furtamos ao acaso uma oculta alegria
Que esprememos como laranja antiga.
Espesso, a formigar como um milhão de helmintos,
Ceva-se em nossa fronte um povo de avejões,
E quando respiramos, a morte nos pulmões
Desce, invisível rio e com sons indistintos.
E se estupro, o veneno, o incêndio e a punhalada,
Não puderam bordar com seus curiosos planos
A trama banal vã dos destinos humanos,
É que nossa alma enfim bastante ousada.
No entanto entre lebréus, panteras e chacais,
Macacos e escorpiões, abutres e serpentes,
Os monstros a grunhir, ladrantes ou gementes,
Que são o nosso vicio em infames currais,
Um existe mais feio e mais perverso e imundo!
Embora não se expanda em gestos ou em gritos,
De bom grado faria da terra só detritos
E num simples bocejo engoliria o mundo.
É o tédio! – os olhos seus que a chorar sempre estão,
Fumando o seu huka, sonha com o cadafalso.
Tu o conheces, por certo, o frágil monstro, ó falso
Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!
Em Suassuna e Baudelaire na viagem eu viajava mais ainda. Mas a sovaqueira não passava, os peidos continuavam, mas agora com a mulher chata, velha e gorda que sentara ao meu lado. As luzes do ônibus apagaram, não podia mais ler. As cervejas tinham acabado. Restara ainda duas horas de viagem. Quando eu pegava no sono, sempre acontecia uma coisa.
Da ultima vez que peguei no sono, só escutei a mãe:
- Sinvalzinho, quer bolacha recheada, pão, pastel, coxinha? Quer sequilho sinvalzinho?
Eu me emburrei e pedi para o motorista parar o ônibus na próxima cidade que ele encontrasse. Havia acabado de chegar. Ele me chamou e disse:
- pois não senhor, pode descer. É aqui mesmo.
Pois não é que era o meu local de destino. Justamente Onde eu queria chegar. Desci.
Vai embora sinvalzinho... Adeus aos peidos e sovaqueiras! Graças a deus me restou a companhia do Ariano e de Baudelaire. Pois é... Eram três horas até meu local de primeira parada. Dessa parada pegarei outro ônibus com mais cinco horas de viagem ao meu local de chegada final: a Paraíba. Tomara que não tenha mais sinvalzinho nenhum, nem peido, nem sovaqueira, e tomara também, que o Ariano Suassuna esteja por lá. Ele aproveita e me autografa os livros que tenho dele... Mas ô azar: sei que ele é paraibano, mas não sei onde ele mora na Paraíba, nem se ainda ele mora na Paraíba!
Não tem problema! Em cabo branco me sento à beira mar, abro uma cervejinha e começo a ler a filosofia do penetral. Garanto que a viagem será profunda e longa, longa... Espero que seja até sem volta!