A CASA DA VOVÓ
- A casa da Vovó é um sarro!
- A gente tem que entrar pelos fundos, que também é a frente.
-Tem uma porta só para entrar e sair, não dá para sair escondido, entrar de um lado e sair de outro.
- Na frente tem um jardim, mas não tem terra no chão, só nos vasos. São muitos, todos cheios de folhagem, pendurados, encostados no chão, em suportes etc. Vaso, vasinho, vasão. O menor de todos é um xaxinzinho do tamanho de um ovo e tem uma plantinha que a vovó disse que chama Rosa de Pedra. As violetas têm as folhas tão grandes que ninguém acredita na vó quando ela conta. Ficam no armário da cozinha.
- Para entrar a gente atravessa no meio das plantinhas e do lado fica o tanque.
- Então já estamos no quintal!
- É, mas se olhar para trás, dá pra ver a rua e a grade do portão da garagem.
- Então, estamos na frente! Se você quiser entrar do jeito comum das casas, pela frente, tem que entrar de costas.
- Aí você não estaria entrando, mas saindo.
- É melhor deixar a parte da frente.
- Depois que você sai do quintal que é a frente, vem a cozinha, que também é sala de jantar, sala de costura, despensa e que é passagem para o banheiro da vovó.
- Ela é bem grande.
- Quem, a vovó?
- Não, a cozinha
-‘Tá bom. Eu sei. Fala do vitrô.
- Na cozinha tem um vitrô que fica meio escondido atrás do armário. Do outro lado desse vitrô tem cortina. Olha, a cortina não fica pra fora da casa, não. É que antigamente esse vitrô, que é na cozinha da vizinha da frente, dava para o quintal dela. Agora dá para a cozinha da minha avó. O quintal dela virou cozinha da minha avó. Entendeu? A vizinha não quis tirar esse vitrô.
- Quando a vovó não está por perto, a gente olha pra dentro da cozinha da outra casa. Tudo isso escondido.
- De vez em quando a vizinha abre o vitrô, chama minha avó e dá doce no pratinho pra ela. Ela gosta de agradar. Minha avó acha ruim ela abrir o vitrô primeiro. Ela diz que primeiro tinha que chamar, depois abrir. Não entendi porque isso. Ela falou isso para nós, não para ela. Disse que é respeito pela privacidade! Só que é na cozinha e não na privacidade do banheiro!
- Privacidade, o que é isso?
- Não sei, pergunta pra ela.
- Nossa, se ela souber que a gente olha escondido dela, nós vamos para o castigo!
- O banheiro é comprido, estreito e moderninho. Tem vaso de planta lá também. O vasinho é do tamanho de uma xícara de café! Quando a vovó quer ver quem chegou, pode olhar pela porta da cozinha ou pelo vitrô do banheiro. Ela prefere pelo vitrô. Diz que assim vê quem é e quem é não vê a vovó.
- A cozinha é torta e entortada, e a gente entra na sala de visita subindo um degrauzinho e da sala entra no quarto, que não tem porta que fecha, só cortina e não tem degrau. Nem precisa de porta, a vovó mora sozinha.
- A vovó é certinha, tudo tem que está reto e quadradinho. Quando ela se mudou para essa casa, e como a cozinha é torta, ela tentava pôr o armário encostado na parede, mas ele ficava torto. Ela olhou para o chão e colocou o armário retinho com o ladrilho. Quando viu, o armário estava meio fora da parede. Se a gente não ajuda, ia ficar o resto da vida dela empurra de lá, empurra de cá. Ela acabou mudando o armário de lugar e encostou-o na parede reta. Ela nem ia conseguir dormir se deixasse lá na outra!
- O vitrô da sala e a janela do quarto abrem para dentro da cozinha. Não sei como explicar, mas é por isso que quando a gente dorme com a vovó e de manhã ela abre a janela do quarto, a cozinha fica lá fora.
- Entra claridade na cozinha por uma telha ondulada de vidro transparente, só que não dá para ver o céu.
- A vovó tem um tapete, é um pedaço de carpete enrolado, escondido embaixo do armário da cozinha; ela estende no chão de ladrilho para a gente brincar e não ficar com as pernas geladas. Ela sabe das coisas.
- Na sala tem um telefone vermelho num banquinho amarelo. Ela disse que esse telefone é vermelho porque está ligado com o mundo todo e que se for começar uma guerra, ela liga e fala que não quer essa guerra! Será que ela consegue isso?! O telefone parece aquele bolo igual a um tijolo.
- Ela tem uma caixa de sapato com tinta guache, pincéis, copinho pra água e paninho pra limpar e um monte de papéis pra gente pintar o que quiser. Também tem lápis de cor, borracha, lápis preto. Depois lavamos tudo e guardamos (se a gente deixar bagunçado, ela não dá mais).
- Tem também outra caixa com sucata: copinho de iogurte, rolo de papel, caixinha de remédio vazia, caneta sem carga, papéis coloridos, palitos de fósforos queimados dentro das caixas usadas, cola, tesoura com ponta redonda, miçanga e canetas coloridas, tudo pra gente fazer o que imaginar: carro, caminhão, máquina de trem, casinha e ela guarda tudo o que a gente faz, ela não joga fora nossas artes, não.
- Ela tem uma vitrolinha que não funciona, mas canta muita cantiga com a gente (a vitrolinha não, seu bobo, a Vovó!). Ela diz que vai dar pra alguém ou mesmo jogar fora, mas a gente sabe que ela não tem coragem. Deve ser lembrança de alguém!
- E conta histórias também, de verdade e inventada. Ela inventou uma estória para cada neto. É sobre a fábrica de bichos que tem no céu. Cada uma que ela inventa! Cada bicho até parece com cada neto. Nós somos um monte de netos! Já dá para fazer um zoológico!
- Eu acho que ela acredita que as estórias dela são de verdade! A gente não fala pra ela que não acredita.
- Aconteceu tanta coisa na vida da vovó, que cada vez que começa a contar, a gente pergunta: é outro pedaço da novela, vó? Às vezes dá vontade de chorar, mas ela sempre dá um jeito de fazer a coisa ficar engraçada e ai a gente ri pra chuchu.
- Na casa dela tem rato, ratinho, ratão (de mentira, pequenininho), almofadas de montão, de tudo o que é cor. Ela sabe costurar e vive mudando os panos das almofadas. Tem porco cor-de-rosa, é de pelúcia, muito livro e revista que a gente recorta para enfeitar o caderno. Os livros não são para recortar, não, só as revistas. Tem um ciúme desses livros!
- Ela tem um puff torto e quando fica brava por causa das artes que a gente faz, ela manda a gente para o castigo do descanso lá no puff, porque é macio e não machuca. É para pensar na arte que fez enquanto está lá. Nele a gente pode até fazer birra, mas é tão gostoso que a gente esquece que tinha que chorar! Já vi um dos priminhos dormir meio pendurado nele.
- Na casa dela tem um galo garnisé, só que ele não canta, não come e não faz sujeira. Colaram penas verdadeiras nele, mas é de mentira. A tia o acha horroroso, mas como foi presente, ela não joga fora, pode até ser feio. É pequenininho. Ela colocou em cima do armário da sala. Assim fica meio escondido.
- No quintalzinho, pendurado num vaso, tem uma gaiola com um tucano dentro, do tamanho de uma caixa de fósforos. Seria melhor se fosse de verdade! É presente do papai dela que já foi para o céu.
- Do quarto dela a gente só sai pela sala. Se pular a janela, cai dentro da cozinha.
- A vovó tem coleção de tudo: miniatura, xícaras e pratos antigos de porcelana, leques e colares...
- Filhos e netos...
- Ah, é. Esqueci!
- Tem bibelô por toda parte, na beirada da janela, na mesa, estante, estantezinha, vitrininha, tem também alguns pendurados, são de vidro, porcelana, madeira, borracha, palha, pau, barro, cobre...
- Esqueceu os de latão, prata e pedra-sabão, cerâmica, bronze, durepox e papel. O menor deles é uma cegonha, diz que tem meio centímetro. É de papel. Pra olhar na palma da mão, a gente não pode nem respirar! Ela fica dentro de uma caixinha também de papel. Foi um amigo do tio quem fez. É coisa de japonês.
- Eles vieram de toda parte do mundo e ela escreve num caderno amarelo quem deu, de onde veio, quando ganhou e se tem alguma história pra contar. Até os amigos dos tios, mesmo sem conhecerem a vovó, trazem miniatura pra ela. Tem do mundo inteiro!
- Já li naquele caderno amarelo que tem da China, África, Rússia, da Europa toda, tem americano, do Chile, Argentina, lá da Pata...você sabe, lá no fim da América do Sul. Nem me lembro mais.
- É pata agonia. Deve ter pato morrendo lá...
- Bobão, é Patagônia.
- A gente anda no meio de tudo isso, não mexe, não põe a mão e não quebra nada. Nem os netos pequenos.
- Ela ensinou cada um, desde que começamos a andar, que não pode mexer. E não bateu na mão da gente, não. Ela levanta o dedo, olha bem encarado nos olhos da gente e fala: não pode! Ninguém tem coragem de mexer! Até hoje não sei por que. Será que é bruxaria?
- Pode ser. Ela tem apelido de bruxa porque adivinha as coisas.
- Que coisas?
- Nossas artes, ora.
- Mas é gostoso ficar olhando. A vovó ensinou que podemos olhar se pusermos as mãos para trás. Se a gente quiser pegar, fala com ela, ela pega e nos dá. Para não correr nenhum risco de cair, ela põe as duas mãos embaixo da nossa.
Ela limpa com escova de dente, um por um, mas não põe pasta de dente, não. Ela tem uma paciência! Ela não comprou nenhum, é tudo dado.
- Em uma das prateleiras do armário da sala, ela colocou tudo que tem a ver com bruxas. Tem coruja, cobrinha (foi o Lucas quem fez), pedrinha cristal, gnomos, anãozinho, sereia, cavalo com asas, cavalo com chifre, caldeirão, maçã encantada, arca, sapo, anjos de todo tamanho, suporte para incenso, gato, pirâmide, a balança do signo dela e nem lembro o que mais...
- A Vovó diz que é o bruxário dela, pois a gente lhe deu o apelido de “bruxa”. E sabe por que? Porque ela advinha tudo o que a gente faz, as artes, as mentiras, as brincadeiras, tudo, tudo. É uma bruxa mesmo, mas é do bem, não fica com medo, não.
- Eu já contei isso, boba.
- Na cozinha, pela telha transparente, ela pode ver os passarinhos comerem frutinha que cai da árvore do vizinho. Eles ficam fazendo – toc, toc toc. Ela se diverte com eles.
- A campainha é um sininho que toca quando a gente entra e quando a gente sai. Não sei por que ele toca na saída, será que é para saber que a gente vai embora?.
- Raciocina, primo. É porque está pendurado na porta. Toca de qualquer jeito.
- Se você não acredita na gente, vai lá. Ela vai fazer você comer alguma coisa, com certeza. É mania dela, ninguém sai sem comer alguma coisinha, tomar um leitinho.
- É gostoso ir lá!
- Se é!
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Esses depoimentos foram colhidos ao longo de algum tempo. Meus netos vinham à minha casa, ficavam brincando com as tintas, as sucatas e comentavam, conversavam ou caçoavam da minha casa, entre si e com os pais e tios. Eu os ouvia, meus filhos me contavam e eu anotava num caderno e fui guardando.
Vou tentar explicá-los:
Eu me mudei para uma casa de fundos.
Inicialmente a construção tinha somente dois cômodos no fundo do terreno, depois a proprietária os uniu ao corpo da casa da frente com uma cobertura, surgindo daí uma cozinha.
Reformou tudo e colocou para alugar. Como os dois cômodos ficavam no limite extremo do terreno, quarto e sala ficaram nos fundos e onde deveria ser a frente, era a área de serviço e em seguida a cozinha. O banheiro fora construído em “L” em relação aos cômodos originais. Por essa razão, o vitrô dava para frente.
Acho que devo parar de tentar explicar, está ficando de novo complicado!
Eles disseram que a cozinha é torta e entortada, porque a parede original da sala e quarto não eram paralelos à parede dos fundos da casa da frente. A cozinha era, portanto, um retângulo com um dos lados menores, mais estreito. Não sei se deu para entender. Se pudesse, faria aqui um desenho dela.
Cada uma das crianças contou um pedacinho, cada um do seu jeito, caçoando ou não, e com isso mostrou como e onde eu morava, quando depois de criar tanto filho e caminhar tanto pela vida, acabei só pela primeira vez. Uma casa pequena com um saldo enorme de coisas de uma família grande!
No princípio foi muito difícil viver sozinha. Foram longos e penosos meses. Aos poucos fui aprendendo que uma parte da minha vida, imensamente ativa, tinha passado.
Anos e anos olhei para todos. Agora era a hora de inverter a direção do meu olhar, pensar mais em mim mesma e continuar ativa. Ponderei sobre tudo, encontrei um saldo positivo e depois pensei: com netos maravilhosos e imaginativos como esses, por que ficar triste? Tenho quase obrigação de ser feliz com tanta coisa boa que me sobrou nesta vida. Ser feliz e agradecer.
Contar agora para alguém esse dia a dia das crianças na minha casa diferente, esquisita e entortada como disseram, foi a forma que encontrei para homenagear a vida.
Não posso deixar de dizer que sou, sim, muito feliz!
Graças a Deus.