O complexo do cheiro
O peso do cheiro é, sem dúvida, complexo e amigável nesse canto. Não posso simplesmente ignorá-lo. A água corrente, que cai em simplicidade, pouco mais é que o barulho vetusto da velha lembrança, que encharca a madeira bela, lembrança a qual entreguei tantos anos de minha vida. É esse cheiro, sim; esse de madeira velha e emboaba, que traz a mim tanto do que sou, e uma parte do que fui ali – como é imensa a nostalgia do odor. Com interesse pequeno, olhei ao lado; vi – surpreso – quem sentava à cadeira emoldurada. Falei: Conhecemo-nos, grande amigo, de imenso tempo, e hoje, não sei por que, fui entender isso. São partes dessa descoberta: estamos entrelaçados demais com a vida, de um modo tão confuso e profundo que o que ocorre ao lado começa a esvair-se; perde-se, esquece-se, e, quando pensas em lembrar, é tarde; ou cedo demais – disse ele.
Culpei-me nesse momento. Talvez isso pareça demasiado estranho a você que lê, mas se foi assim que senti: é assim que descrevo. Culpei-me por aparecer nesse lugar; nessa exata data, e não em outra qualquer. Eu, que tanto considerei as datas todas completamente desprezíveis, agora ajoelho-me; ajoelho-me não perante a mim mesmo, mas perante aquele cheiro da velha madeira molhada, que tanto me encantou a alma. Ajoelho ao olhar àquela sucessão de momentos que um dia vivi com tamanha intensidade e que – será ? – por um momento esqueci. Era, em verdade, aniversário de Tenório. Não, não era simplesmente seu aniversário; era, pois, um conjunto indescritível de momentos que vinham à tona com uma intensidade inigualável. Era o topo de uma amizade sem topo; em um monte enorme com altitude maior alguma: era indecifrável. Vir-me-ei ao meu velho amigo e disse: Vou. Vou, sem palavras. Ele – como sempre compreendedor insigne da ausência de significados – consentiu com a cabeça. Quando me virei, porém, fui chamado: - Abra aquela gaveta, por favor. Fiz o que foi pedido. Nesse mesmo assaz instante, uma borboleta com a convergência das cores do universo e com uma fragrância que exprimia o cheiro do conhecido não lembrado, saiu num vôo sublime. Lá, no fundo da caixa, num pequeno canto espremido, havia uma carta, cantava ela assim:
“Borboleta Organoléptica II
Se vida é o que tens
Não a guarde só para ti
Um desfile de luminosidade
Em seguida
Sei:
És
Feliz.”
Custear as palavras é o que tornou, em mim, a ausência um esplendor de simplicidade. Hoje é aniversário de alguém que você, poeta, mais do que eu, conhece. Não tenho a síntese poética que tens, amigo; mas não preciso falar, pois sou, sempre, verdadeiro. Entregue isso a ela, tenho certeza que entenderá que os versos são meros pretextos para que saiba o quão é importante uma borboleta livre voar, porque o mundo não cabe nessa gaveta. Nesse momento, confortei-me com o silêncio: nada mais poderia ser feito naquela situação. Como quem houve pensamentos, disse Tenório: Sinto, nesse exato momento, gratidão e pena. Gratidão porque, para desconforto do comum, não ouvi se quer uma palavra confortante sua; esse sorriso, sim, esse sincero sorriso calmo, mesclado a esse olhar que diz o que só a amizade pode entender, é por isso que sou grato. Sou grato porque raros são os sorrisos que dizem alguma coisa: os risos vão além dos lábios, que, contagiados, pensam em mentir, degradar, entristecer. Pena tenho eu, meu amigo, dos objetos, dos quadros, da casa, das árvores; pena porque não podem sentir o que eu sinto agora, ainda que, no caso das árvores, vivam, não podem sentir, sentir que a amizade é algo sublime, que se eu for tentar reduzir as palavras, serei covarde, e não pretendo ser. Não se esqueça: para se fazer rir, de verdade, é preciso conservar um manancial de sorrisos ainda maior, na própria alma. Levastes um sorriso meu hoje, sem palavras, sólido, palpável, silencioso. Levastes, enfim, um sorriso sincero.