Falso Brilhante
Eu deixei um bibelô de cristal cair no chão e ele não quebrou: ele não era daquele material, não passava de um acrílico vagabundo que iludiu minha vista por tanto tempo.
Não sei exatamente o que me acometeu, se uma revolta contra quem me vendeu, subestimando minha inteligência; se um desprezo pelo objeto que a partir de então não me valia mais nada; ou se uma ínfima curiosidade de ainda pegar o objeto na mão e analisá-lo, como se ainda me restasse alguma esperança de reter qualquer bom sentimento.
Eu tinha muita estima por aquilo. Pensava mesmo que era de raro valor, tanto que carregava nas mãos, agarrado contra o peito, desviando-me de qualquer obstáculo que representasse perigo. Ora ou outro expunha com tamanho orgulho, porque queria mesmo era que vissem o tesouro que eu possuia. Meus olhos brilhavam, meu coração vibrava: era lindo o encontro dos meus olhos com o meu amor. Era ainda mais emocionante ver nos olhos alheios a cobiça, e encantamento e a boa inveja de mim, por eu ser a dona de tão forte talismã. Era meu, só meu... e eu era feliz por isso.
A vida se justificava pela felicidade que eu sentia por poder contemplar meu pássaro encantado todos os dias, a cada amanhecer. Nada mais me importava ou me apetecia, até quando por um delize ele caiu. A queda se deu em câmera lenta, e a percepção de que eu perdia foi progressiva e marcante. Minhas mãos abertas e trêmulas, meus olhos perplexos e incrédulos, minha alma doída. Ver os estilhaços espalhado pelo chão era questão de segundos, o quanto necessário para que pedaço de mim também me fosse arrancado, à sangria.
Perdi. Mas junto ao desencanto da perda, trouxe-me, minha estima, a surpresa decepcionante: não era de cristal, nem de vidro. Aquilo que com tanto esmero guardava, tampouco se quebrou... E não é o que me vale materialmente o que me alucina; mas a mentira, o engano: a minha sina.
Eu, descrente do meu desencanto, arrebentei-me por dentro em mil pedaços a mais que os farelos de plástico ao chão. Quis voltar ao mercador do amor, ao porto da desilusão e cobrar restituição. Revoltei-me com a intenção maldosa e maldita de me passarem a perna, de me usarem e usurparem as moedas das minnhas emoções. Aquele ladrão da noite, que passava por mim a desdenhar suas paixões! Vil e pútrefo ser da madrugada que a terra há de comer lentamente em definhante processo de decomposição... Mas ao cais não retornarei! Eu já desabarquei e a essas águas turvas e caudalosas eu jamais voltarei.
Tomou-me também o desconsolo do irreversível: aquilo que não se quebrou, no entanto se arranhou, ofuscou-se do brilho e trincou sua barata matéria. Envolvia com tanto capricho no tecido da minha pele, acolchoado pelo primor do meu coração, o que usaram para passear pelo meu espírito com a máscara da ilusão. E inundei-me de uma fúria louca. O que ao meu redor estava foi tudo lançado aos meus pés, os fios foram todos arrebentados pela força da minha ira. Um espelho se trincou e manchou minhas mãos de sangue, porque de lágrimas lavaram o meu rosto, e de desgosto eu purifiquei minha alma. O mercador, que não era de Veneza, me enganou. Não era de cristal, nem de vidro aquele amor: era utopia de medíocres, vilania do mal-amado.
Aquele bibelô que contou estórias de reis e rainhas e que me fazia acreditar em uma vida de princesa. Amuleto que me garantia a sorte dos anos... não passou do blefe mal cheiroso de um condenado ao vício do jogo errante. Ele ainda acredita que se manipula os dados do amor...
Eu não perdi um falso brilhante. Perdi exatamente o tempo que pus a protegê-lo.