REFLEXO
 
 
 - Bom dia! Foram minhas palavras lacônicas assim que me olhei no espelho.
O bom dia era para minha imagem refletida ali ou para a vida que começava naquele dia? Não sabia ao certo, mas com certeza era minha imagem ali refletida que me saudava naquela manhã. Sempre tive essas esquisitices. Uma delas é enxergar além de mim ao olhar-me no espelho. Isso seria bom ou ruim? Isso também pouco importa agora que o tempo me parece tão curto e eu tento aproveitar todos os segundos.
Por exemplo, enquanto me preparo para o trabalho o café já ferve lá na cozinha.  O tempo realmente me parece muito curto. Ou será que não levantei tarde demais? Confesso que sou meio preguiçosa de manhã e nem o despertador do celular me incomoda. Só me levanto quando se esgotam as possibilidades de permanecer no aconchego dos lençóis. E quase sempre faltando apenas vinte minutos para as sete horas. O café eu me acostumei a tomar em cinco minutos e em frente a TV. É quase um ritual para mim. Só assim consigo sentir seu paladar. Não disse antes que tenho essas esquisitices?
Antes, quando ia trabalhar às oito horas, assistia ao telejornal “Bom Dia Brasil”. Sentia-me realmente executiva, tomando café enquanto me inteirava das primeiras notícias do dia. Apenas fantasia. Pois não sou executiva, ainda que muito tenha sonhado. Sempre me fascinei por esse mundo onde as mulheres mandam em cima de seus saltos altos e cabelos presos ao alto da cabeça. Por um tempo pensei que fosse feminista. Mas isso hoje pouco me importa. As mulheres serão sempre mulheres ainda que no comando. Mas não serão menores ainda que se dispam de suas “burkas” invisíveis sob as quais escondem seu lado frágil.
No entanto, para as afegãs de Cabul isso realmente foi uma vitória depois da queda do regime Taliban, embora em algumas regiões a repressão se mantenha. Despindo de suas burkas elas passam a existir de fato.
Mas não seria demais tentar comparar o abstrato do real? Nossas máscaras invisíveis e as burkas reais de Cabul?
Mas hoje acho que estou me demorando muito em frente ao espelho. Como ele ousa me prender assim? Talvez seja essa imagem que quase sempre se reflete do outro lado. Imagem sem burkas. Pode ser.
Mas hoje confesso que ao me olhar no espelho percebi que as marcas ali eram bem melhores apesar dos quilos a mais que descobri. E não eram imagens além de mim. Havia ganhado alguns quilos no último mês. Tudo por causa de um remédio que meu marido me trouxera da farmácia e me obrigara a tomar. Também pudera, eu estava quase me tornando anoréxica. E não por medo desses quilos a mais. Mas devido ao estresse desse mundo moderno. E então compreendi que homens não gostam de mulheres magras, apesar de brigarmos com a balança e as calorias. Mas consegui sorrir um sorriso travesso e me lembrei que minhas roupas mal se fechavam. Renovar o guarda-roupa era coisa urgente numa época de bolsos quase vazios.
- De que ri? Perguntei para a imagem de sorriso travesso que me olhava do outro lado. Talvez risse das dificuldades em fechar as roupas ou da dificuldade em renovar o guarda-roupa. Mas era sério. Entretanto não era coisa que me importunava. Eu queria apenas paz. Essa paz que há alguns dias estava dentro de mim.
Foi então que me lembrei que muitas vezes olhei no espelho e enxerguei ali minha imagem aos prantos. As razões? Já nem me lembro mais porque na verdade são tantas as razões e talvez nem exista razões de fato. Apenas um ciclo que me torna mais sensível. E nem culpada sou por isso. Não fui eu quem criou essas células que agem dentro de mim. E não critico, porque cientificamente elas me fazem mulher.
Mas certamente elas mesmas me fizeram derramar lágrimas ou gritar muitas vezes um grito mudo que só o espelho ouviu ou refletiu. Quanto a mim eu apenas assisti com os olhos da alma. Acho que o espelho entende a linguagem dos sinais e eu sou dessas pessoas que se apavoram diante de alguém que se comunica com gestos.
Entretida que estava com o reflexo do espelho, assustei-me quando ouvi o café fervendo e se derramando sobre a chama do fogão. Corri a tempo de salvar um pouco do café preto que se esparramava no esmalte bege de meu velho fogão. Limpei a sujeira e terminei o café já reduzido pela metade. Tomei-o em silêncio em frente à televisão.
Troquei-me rapidamente e nem maquiagem fiz. Apenas um creme hidratante e um leve batom quase natural retiraram a palidez de minha pele clara. Desci correndo as escadas enquanto fazia minha oração de entrega a Nossa Senhora. Fazia essa oração sempre assim enquanto descia as escadas. Havia me acostumado. São tantas as coisas que se tornam mecânicas em nossa vida. Mas uma coisa era certa, não começaria bem o dia se não fizesse minha oração à Nossa Senhora enquanto descia as escadas.
Lá fora o mundo me esperava. Mas eu nem pude vê-lo em toda a sua essência. O tempo é curto demais. Mal se tem tempo para compreender nossos ciclos e inquietações.
Sol já ia alto ao céu e eu atrasada como sempre uns dez minutos. Até hoje nunca compreendi meus atrasos se o percurso até meu trabalho não passava de uns cinqüenta metros.
Sentei-me em frente ao computador meu único companheiro de todos os dias e arrastei o dia entre o teclar e os números, únicos seres que ainda brigam com meu cérebro. Já não os admiro como outrora. Perdi minha obsessão sobre eles. Troquei-os pelas letras que me entendem como um psicanalista mudo e me deixam manipulá-las ainda que de forma amadora.
Mas os números fazem parte de minha vida e brigo com eles nove horas diárias e ao final do dia sinto-me uma boxeadora nocauteada pelo cansaço e as cifras que se desenham em cartões de crédito e folhas de cheques espalhadas na esperança de serem cobertas ao final do mês. É... Preciso sobreviver.
Na volta pra casa, quase automaticamente percorro os cinqüenta metros que me separam de meu doce lar. Subo as escadas devagar. No semblante as feições dependem dos acontecimentos do dia. Mas na maioria das vezes o cansaço ali se estampa juntamente com a ansiedade de que o dia de amanhã seja melhor. São tantas as esperas por melhores dias. Mas na rotina que sigo quase involuntariamente, espera-se mais pelo fim do dia; o aconchego do sofá azul que me afaga nessas tardes alquebradas e o calor dos abraços e a umidade dos beijos de meu poeta sonhador. Acostumei-se a essa vida e apesar dos sonhos serem tão distantes sinto muita paz.
Nem me preocupo em dar uma boa-tarde ao espelho que me refletira de manhã. Ignorei-o. Mas ele me segue mesmo quando lhe dou as costas. Sei que o reflexo de minha imagem estampada ali sempre interpela minha condição de mulher. E a paciência para reflexos nem sempre é a mesma com a qual se iniciou o dia.
Mas ainda assim o olho de esguelha enquanto a água do chuveiro desliza em meu corpo. Talvez agora eu tivesse me dado conta realmente dos quilos a mais. E ainda esta tarde eu extrapolei no pão com manteiga. Mas que importa? Sei que as preocupações que sempre virão queimarão as calorias extras. Só não sei quando e penso que não quero saber. Por enquanto prefiro esta paz que sinto nos últimos dias apesar dessa rotina tão abstrata que faz parte de minha vida. E depois o reflexo do espelho sempre existirá, mesmo que eu não queira. E sempre existirão mantos invisíveis a cobrir rostos. Isso faz parte do mundo da mulher como fazem parte os ciclos e as inquietações. 
 
 
Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 12/12/2008
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