Eu, nós e os outros
A multidão esvai-se paralela à sua sombra, experimentando pensamentos vagos e voltando o olhar ao que não quer ver... A cada passo, debruça-se sobre as vitrinas, inventando múltiplos corpos e, a cada esquina sombria, sustém um arrepio, disciplinando a alma a não se lamentar com a tristeza alheia. Trata-se somente da filosofia de uma vida urbana, em que a audácia de reconstruir uma sociedade é escassa perante a pressa desenfreada de viver!
Por detrás do ruído ensurdecedor dos automóveis e da espera exaltada das horas, cada homem que passa é um estrangeiro, detido no seu drama e apaixonado pelo seu destino, tão desinteressado pelas desigualdades sociais como pela metafísica e preferindo a luz artificial, por ocultar os seus pesadelos. Assim, crente somente na próxima madrugada e querendo o que não é seu, o homem perde-se na demonstração ambiciosa do que não é, num conceito egoísta de bem-estar. Pergunto-me se, alguma vez, a sociedade interrompeu a sua rotina agitada para repensar o conceito de justiça ou para se curvar sobre os traços ásperos da face de um mendigo… Posso também nunca o ter feito, mas já me demorei no sorriso esbatido de um desses homens de ninguém, memorizando a sua voz e consumindo, num só gole, um pouco do seu sofrimento. Ainda hoje, guardo esse sabor acre no meu peito, o de quem engoliu um desespero inteiro, sem o repartir com mais ninguém… Quando voltar àquela rua, talvez ele tenha partido ou o encontre desvigorado, com restos de neblina no casaco e uma voz rouca, ecoando de si…
Será toda a sociedade um só mendigo, de um lado nu e do outro coberto de ócios, que implora o recomeço, uma nova identidade? Até há pouco tempo, intrigava-me a atitude passiva da sociedade face à exclusão e à precariedade… Contudo, após algumas noites de espírito inquieto, suspensa no parapeito empoeirado da janela, entendi que a discriminação e a arrogância eram actos espontâneos, entrançados no mais profundo das nossas entranhas. Desde cedo, numa linguagem quase imperceptível, se diz às crianças para não decorarem os rostos dos mendigos e não lhe estenderem um gesto de afecto ou compreensão, levando-as a acreditar que aquela é uma realidade demasiado remota para um dia vir a ser a delas. Este ensinamento, que muitos pais designam de protector, é um forte estímulo à criação de uma sociedade de postura hirta e desinteressada.
Apesar dos ideais frágeis e da desarrumação de conjecturas que possuímos ao avesso da pele, temos a capacidade de criar e de nos recriarmos! Não podemos permanecer estáticos, conspirando contra os mais fracos e consentindo que a crueldade vá deixando as suas marcas. O que nos é transmitido pela sociedade não justifica a desumanidade dos nossos actos, nem o orgulho de sermos um povo devoto se pode resumir ao ofício de multiplicar deuses. Nas ruas das cidades, encostados ao sopé de uma estátua ou desvanecidos nos degraus de um prédio, os mendigos permanecem, habituando-se ao calafrio, depois da aragem, e a contar a eternidade pelos dedos. Alguns, talvez os menos experientes, ainda erguem a mão pálida sobre o vulto de qualquer desconhecido, enquanto outros, conformados com as rugas e com a negação feroz dos lábios, fazem pausas longas entre cada súplica.
A multidão regressa desfeita na mesma cinza que o vento soprou rumo ao horizonte, convicta no seu egoísmo e em que amanhã fará chuva. Eu vou perdida no seu labirinto de vultos, aparentemente distraída, esquecendo as mãos no calor dos bolsos e exibindo o meu estatuto numérico. No fundo sou parte da multidão, pois a firmeza dos meus ideais vai-se desbotando, pouco a pouco, assim como, o desejo de libertar a sociedade dessa mordaça de preconceitos. Talvez, um dia essa multidão perceba que a sua caminhada apressada não é mais que uma fuga às responsabilidades de cidadania, convergindo para objectivos vãos e não para a idealização de um futuro colectivo. Enquanto isso, a miséria estende-se pelas avenidas, dividindo-se em mil personagens… Porém, para nós será sempre a mesma a que não nos pertence!
Cláudia Borges