Meu velho Rio Paranaíba
 
Ontem eu o procurei mais uma vez depois de tanto tempo. As cheias da estação do verão passado não me deixaram aproximar. Mas de longe eu o via. Imponente. Suas águas além do normal a seguirem o seu curso numa ferocidade que eu conheço bem.
Agora já no outono quase chegando ao inverno, suas águas já não são as mesmas. Muito de seu nível se perdeu nessa sua viagem infinita.
Fui então revê-lo. Já sentia saudades. Saudades da sua compreensão silenciosa. Saudades das nossas sessões de psicanálise.
 Aproximei-me com ânsia. Um misto de medo ainda tomava conta de mim ao ver que suas águas ainda cobriam a pequena ilha onde tantas vezes brinquei a minha infância e onde muitas vezes andei a meditar ou a ruminar minhas angústias.
 Sua praia ainda estava encoberta pelas águas lamacentas que roçavam com força as árvores das margens. Mas era como uma carícia, uma intimidade que só a natureza conhece. Percebi essas carícias no roçar das gaivotas nas águas ainda turbulentas. Era como um beijo roubado. Uma provocação quase apaixonante. Talvez um desejo de ser possuída pelo ser mais forte.
Impossibilitada de andar na praia ainda invisível e sentir a carícia das águas, sentei-me no alto de um barranco e pude ver o velho rio passar. Majestoso como sempre fora desde que se tornara obra de Deus e também desde que o nomeei como a minha primeira paixão.
Há amores que se amam de longe. Apenas com o olhar. Por isso fiquei ali a olhar o velho rio. No íntimo senti a carícia de suas águas. Senti sendo possuída por ele. Mas não era o possuir dominado pela paixão do amor. Talvez um estado de alma que não se explica quando se está em comunhão com a natureza.
Um vento frio de outono balançava as árvores de sua margem desnudando-as de suas folhas amarelas. Estas dançavam no ar o balé mais clássico que eu já assistira e que tivera o mais trágico dos fins. Seriam levadas pelas águas até um destino que jamais conhecerei. Talvez o mar...
Encolhi-me com o queixo nos joelhos e fiquei a olhar toda aquela natureza que eu tanto conhecia e tanto amava. Quisera todos os humanos tivessem os mesmos sentimentos! Quisera todos eles amassem a natureza e a compreendessem! Certamente não veríamos hoje muitos rios secarem. Muitas florestas se dizimarem.
A natureza entende de sentimentos. Sim, eu sei que entende. Quantas vezes aqui cheguei às margens do velho rio e falei de meus sentimentos. Ele passou muitas vezes por mim a me ouvir. Levou minhas mágoas e meus anseios como leva agora essas folhas amarelas de outono.
Lembrei-me das crônicas que lhe fizera e meu primeiro poema e que lhe foi dedicado:
 
Velho Rio !
Tu te lembras?!!!
Das vezes que eu aqui chegava,
E muito feliz admirava,
As curvas que tu fazias?
 
Velho Rio!
Tu sabes bem!
Das coisas que eu sonhava,
Quando feliz esperava,
Que o sol escondesse além! (...)
 
Nesses dias sei que ele me compreendeu mesmo à distância porque a partir de então o meu amor se tornou maior e a ânsia de vê-lo foi sempre mais urgente.
 Por um instante pensei que suas crônicas e poemas seriam infinitos. Eu os escreveria tantos quantos quisesse para falar de suas águas... De sua beleza... E pensar que em todos esses momentos em que as crônicas e poemas nasceram eu joguei em suas águas todas as minhas lamentações. Meus sonhos... Minhas desilusões... Sei que ele me entende...
Hoje eu me sinto triste. Pensativa. Corro muito pela vida. Meu mundo de concreto globalizado me subjuga a uma existência que não compreendo. Será preciso isso para sobreviver? Meu velho rio entende, mas ele mesmo já está se tornando vítima desse mundo globalizado. Queria salvá-lo. Que poderia eu fazer? Sou covarde. Não me basta apenas olhar a natureza, olhar para meu velho rio como agora. Queria compreender porque destroem a natureza quando ela apenas se oferece a nós.
Somos todos covardes. Sinto uma dor no peito ao pensar nessa covardia. Mas existem amores covardes. Talvez meu amor seja covarde, pois prefiro olhar e talvez não compreender, porque a compreensão dói mais do que essa covardia de nada fazer pelo meu amor.
 Muitas vezes prefiro fugir pois sou um pequeno grão de areia. Talvez meu velho rio não compreenda. Mas não é fácil ser pequeno e não ter poder. Em silêncio lamento o futuro e peço perdão pela minha covardia.
Preciso ir. Não posso mais olhar essas águas. Amo cada vez mais o velho rio, por isso preciso ir. Não quero chorar o futuro. É tão incerto. Apesar da sua linguagem muda, sei que o velho rio me compreende. Só espero que quando eu voltar ele ainda esteja aqui...
( Escrito no fim do outono de 2007)
 
 
Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 09/12/2008
Reeditado em 30/12/2008
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