Conto de um Reencontro

Conto de um Reencontro

Dizem: “quem conta um conto aumenta um ponto".

Acreditem se quiser, mas no nosso caso, tivemos que omitir certos fatos, pois correríamos o risco de sermos tomado como mentiroso.

Era uma noite agradável de julho. Estávamos nos despedindo de um reencontro cheio de emoções com Belém. Fazia mais de dez anos que não tínhamos tido a oportunidade de renovar esse imenso prazer.

Caminhávamos contra a brisa como se procurássemos a sua fonte. Subitamente aquela melancolia da despedida foi interrompida por línguas de luz que jorravam das pedras da doca do Ver-O-Peso. Interrompendo o nosso pânico, e de forma inversa à criação, da luz fez-se uma voz: não te assustes, nem tenhas medo. Só quero te contar minha história.

Se teu interesse tivesse sido maior, boa parte dessa história já seria do teu conhecer. Apesar do imenso bem-querer que tens por mim, exijo que, a partir deste momento, passes a demonstrá-lo, divulgando este nosso reencontro.

Meu nome Ver-O-Peso é de origem fiscal. Fui o ponto escolhido para verificação do peso das mercadorias exportadas, sobre o qual eram pagos os tributos.

Minha história oficial teve início em 18 de julho de 1687, quando a Câmara de Belém, necessitando de melhores rendas para manter a sua infra-estrutura e desenvolver os serviços públicos, teve a iniciativa de endereçar uma representação ao Rei de Portugal, pedindo-lhe a concessão do tributo do Ver-O-Peso.

Antes de o patacho (antigo navio a vela) "Santa Maria da Candelária", de o caravelão "Santa Maria da Graça" e de o lanchão “Assunção" ancorarem bem pertinho daqui. Antes de a expedição, sob o comando de Francisco Caldeira Castelo Branco,fundar Belém em 12 de janeiro de 1616, eu já existia.

A magia da voz é substituída pelo mistério do silêncio. As línguas de luz, tal como velas de embarcação, tremulam e começam a formar imagens.

São índios deslizando nas suas ubás (pequenas canoas constituídas de um só lenho escavado a fogo, ou de uma casca inteiriça de árvore, cujas extremidades são amarradas com cipós). São imagens, que ele, antes de ser doca aterrada, antes de Belém ser fundada, contemplou.

Antes de eu ser doca em forma de quadrilátero, construída e revestida de pedra na segunda metade do século XIX. Antes de eu ser um dos pontos mais pitorescos de Belém, eu já existia como a foz do igarapé do Piri da Juçara, que mais tarde teve que ser aterrado, pois seus teimosos igapós dificultavam a vida urbana.

Atuei como posto de recebimento do tributo para a Câmara de Belém, de 3/1688 a 9/1839, aproximadamente 151 anos. Entretanto, de tradição como mercado, tenho praticamente a mesma idade de Belém. Anos bem vividos e confortados pelo verde das ilhas que bordam a Baía de Guajará.

O meu sucesso e conseqüente reconhecimento internacional não decorreram da minha função de fiscalização e, sim, da anarquia, do reluzir e da variedade de cores e de formas do meu espaço, da graça do sotaque e da riqueza dos costumes e crendices do meu povo.

É gente que serpenteia lenta e preguiçosamente em esbarrões delicados, em burburinho e dispersando olhares.

Quem já veio me conhecer recorda a cerâmica, as plantas, ervas, frutas, farinha, peixe, caranguejo, camarão e certamente ainda guarda o sabor das frutas regionais e dos peixes.

Para cura, tenho uma imensa variedade de ervas e óleos da farmacopéia amazônica. Para a proteção, segurança e anseios, somente daqueles que me visitam, tenho as ervas e os amuletos da pajelança dos nativos guajarinos ou marajoaras.

Para perfumar as roupas, ou uns amarradinhos de raiz, o "patichuli", ou o "cheiro" que é vendido em saquinhos de papel de seda e sob encomenda. Tenho as raízes para perfumes, ou os próprios perfumes. As mais procuradas são o "patichuli", a "priprioca" e a "baunilha".

Diariamente, apresento dois espetáculos. A atriz principal é sempre a maré. Num ela está cheia e no outro vazia.

Com a maré cheia podes assistir as ondas brincarem com as canoas, com as freteiras, geleiras, barcos e vigilengas, e os caboclos seminus pularem, sem muito esforço e com muita naturalidade, de uma embarcação para outra, para formar grupos e prosear.

Quando maré vazia, as embarcações ficam imóveis. É um monumento em homenagem à destreza e à coragem do caboclo ribeirinho. Imóveis, como se ainda permanecessem atoladas em um daqueles igapós teimosos do "Piri da Juçara". Indiferentes, desdenhando a imobilidade das embarcações, urubus, aos montes, disputam carniças.

Sinto que a aurora se aproxima. Antes que nosso reencontro tenha seu desenlace, te peço que não meças esforços para divulgá-lo, principalmente para aqueles, que ainda não tiveram o prazer de conhecer-me.

Quem ainda não veio até Belém para me conhecer, não se apresse, mas venha. Sem preocupações, pois certamente nos entenderemos. Conheço do "takitaki", dialeto do Suriname, ao japonês.

Vem e participa da dança do vento com as velas coloridas. Vem viver a anarquia e a magia do meu espaço. Mas não deixe de contemplar-me pelo menos uma vez no silêncio da noite e com a perspicácia da solidão.

Quem sabe sonhar, mesmo que a noite sem pudor se arreganhe em raios prateados de luar, poderá perceber línguas de luz emergindo das pedras da minha doca na forma de velas de embarcações. Nestas velas estão armazenados os dados, as imagens e os sons, que lhe contarão a minha história e lhe transportarão ao passado da cidade de Belém.

A magia e o mistério deste reencontro cederam lugar aos primeiros sinais de reinício da rotina da vida urbana.

"VER-O-PESO" é o registro desse nosso reencontro com Belém. São rimas que pretendem divulgar essa testemunha da história de Belém, que permanece escancarada às câmeras dos fotógrafos, aos pincéis dos pintores e às penas dos poetas e escritores.

Ver – O – Peso

No passado, a foz aterrada

do igarapé do Pirí da Juçara.

Hoje, revestida de pedra,

és de Belém, a doca consagrada,

és de Belém, a doca consagrada,

Posto Fiscal do passado.

Hoje, misto de pajé e doutor,

aconselhas figas a mau-olhado

e Catuaba como estímulo ao amor,

e Catuaba como estímulo ao amor.

És um cozinheiro de fé.

Da África: o vatapá e o caruru;

das origens: o açaí, o chibé,

o peixe no tucupi e o arroz com urucu,

o peixe no tucupi e o arroz com urucu.

Hoje, és mercado em festa,

onde velas bailam com o vento

e amantes combinam para a cesta

o “dueto suado” do “ardente momento”,

o “dueto suado” do “ardente momento”.

Mais que todos esses títulos,

tens um que só poucos tem,

o mais nobre do teu currículo:

testemunha viva da história de Belém,

testemunha viva da história de Belém,

Formas jorram desse mercado,

como mistério das noites sem luar,

transportando os que sonham ao passado

de Santa Maria de Belém do Grão Pará,

de Santa Maria de Belém do Grão Pará.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 09/12/2008
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