A menina iraquiana da guerra de 2003
Linhas escritas pouco depois da segunda guerra do Golfo, conflito que afinal apenas começou com a derrota de Sadam, conflito que parece não ter fim, pois todos os dias morrem civis, soldados, guerrilheiros, todos os dias de uma guerra que parece eterna, parece eternizar as cruzadas...
Desde muito cedo que senti um fascínio pelas guerras, quer dizer, não as guerras em si, mas as máquinas que a faziam, e por arrasto os homens que as comandavam. E essa estranha paixão começou na casa de um amigo meu, tinha eu seis anos, seis puros e inocentes anos de um petiz que encontrou na colecção de aviões desse amigo um mundo novo, um mundo glorioso onde as façanhas dessas máquinas o abismaram e deram início a uma ligação duradoira entre eles e esses fantásticos engenhos. Deixando a terceira pessoa de lado, e ao mesmo tempo que aprendia a ler pude aceder à enorme colecção (ainda desse amigo, mais velho e líder incontestado do bairro) cheia de palavras, mas também de inúmeras fotos dos venerados Sptifires, Hurricanes, B-17, entre outros, mas também os aviões do inimigo (duma forma menos intensa pois desde cedo aprendi a detestar tudo quanto fosse nazi). Gastei assim as primeiras mesadas nos meus primeiros modelos e revistas, sendo que em poucos anos consegui ter uma colecção ainda maior do que a do meu guia, que entretanto entrara na adolescência e no lugar dos modelos vieram os discos e revistas do género. A coisa podia ter ficado nos primórdios da minha adolescência, mas não, eu continuei a amar os aviões a aumentar o meu conhecimento sobre eles, sendo que a eles se uniram a descoberta dos carros de combate, da sua bibliografia, etc, etc…Claro que eu também comecei a comprar os vinis, mas a sedução pelas máquinas continuou, indemne à idade. Mas...era um amor de certa forma superficial, pois eu olhava apenas para a parte gloriosa da guerra, para as façanhas quase sem sangue, para as medalhas dos sobreviventes, para o ar glorioso que estes exibiam…Até que descobri o Holocausto, num livro de uma beleza horrenda chamado Trebrelinka, que era o relato do que se passara neste campo de concentração. Foi o princípio da minha cruzada sobre saber o que realmente se passara na guerra, no corpo e nos espírito dos combatentes de ambos os lados, e quanto mais lia, quanto mais queria saber, saber, saber e procurar as razões os actos de gigantesca barbárie, que levaram à pulverização das cidades alemãs por parte dos gloriosos pilotos aliados, da execução de prisioneiros de ambos os lados, de imensas loucuras hediondas que tiveram o seu corolário de horror nos campos de extermínio nazis. E depois da 2ªGuerra vieram as outras porque afinal eu não consegui e ainda hoje ainda não consigo perceber a loucura que se apodera dos homens quando eles tomam armas e rasgam as leis da mais essencial humanidade.
E eu mudei, mudei muito, apesar de continuar a amar aviões, estou mais introspectivo, mais filosófico, talvez um pouco cínico, mas um adversário incondicional de toda e qualquer guerra, sem contudo cair na histeria pacifista e muitas vezes infundada (pois vai a reboque de ideologias políticas e não de ideias próprias de cada ser) de alguns.
Li muito, continuo a ler, vi e continuo a ver documentários e sou um devorador compulsivo de telejornais cada vez que eclode mais um conflito, ainda e sempre na tentativa de o compreender, pois uma coisa é dizerem que é o petróleo que está por detrás de mais um conflito, ou então apenas mera política, mas outra coisa é perceber o real porquê disso…Passei uns tempos na tropa, obrigado pelo Serviço Militar Obrigatório, e a minha incompreensão ainda aumentou mais…Achei e acho tudo tão irracional, pois cada vez olho mais para o aspecto humano da questão, para a temível desumanização que tem lugar nas batalhas…
As guerras são infames porque nelas se elimina a humanidade dos combatentes, ao mesmo tempo que se expõe de uma forma por demais aviltante a humanidade das vítimas…
Mais recentemente impressionei-me com a guerra do Iraque. Não foi pelos bombardeamentos ao vivo de Bagdade, não foi pelos mortos de ambos os lados mostrados cruamente pelas televisões, ou pela vergonhosa exibição de prisioneiros de ambos os lados que tanto Iraquianos como Aliados fizeram questão de mostrar, não, não foi isso, foi uma cena muito curta, muito breve, quase mostrada como nota de roda pé pelas televisões: depois de encerrados os combates os Americanos tiveram de fazer uma busca praticamente de casa em casa em busca de armas, de altos dirigentes Iraquianos ou de apenas membros do partido de Sadam que em liberdade poderiam incentivar a resistência ao ocupante ocidental (pelo menos é o que eles diziam…) e nessa ocasião, nesse momento captado pelas televisões do mundo, meia dúzia de soldados Americanos entraram numa habitação bastante modesta (na Europa e na América seria considerada habitação de bairro da lata) de arma apontada, de lá saindo uma família com um ar digno, de braços no ar, tentando obedecer à estranha língua dos invasores e aos seus gestos universais de intimidação. Os pais serenamente mal vacilaram e mal demonstravam medo, bem como o filho pequeno, mas a menina…chorava compulsivamente, olhando ora para um lado, ora para o outro, com medo daqueles homens enormes e daquelas armas estranhas ao seu mundo infantil que deveria ser de paz. E claro, os soldados não encontraram nada, a não ser a miséria, legado do ditador que num país rico tornou os seus habitantes pobres, mas isso é outra história…O que interessa para mim nesta história é que no momento que vi as imagens odiei como nunca o tinha feito a guerra, odiei os soldados, os seus chefes, Sadam pela tirania e o estúpido presidente Bush, muito longe da calma e convicção (por vezes mentirosa…) do agora quase mítico Clinton, odiei aquele inferno, o inferno da pequena Iraquiana e tive vontade naquele momento de pegar nela e de a trazer para um mundo de paz, onde ela pudesse crescer sem sobressaltos, sem este tipo de horrores. Provavelmente ela quando crescer irá transmitir essa recordação aos seus filhos, e estes aos filhos deles, fazendo que o ódio aos ocidentais ganhe ramificações geracionais, fazendo com que a resistência à próxima invasão seja ainda maior, isto perante o espanto generalizado dos líderes ocidentais desse novo futuro que voltarão a cometer os mesmos erros passados por se esquecerem de pecadilhos antigos, porque ou não viram, ou não quiseram ver as imagens paradigmáticas d’
A menina iraquiana da guerra de 2003
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