Ambigüidades.
Somos dentre todas as espécies vivas da biosfera àquela com características mais estranhas. Essa história de que somos uma “espécie superior” precisa ser revisada. Antes se dizia que nossa diferença para as outras espécies era o fato de possuirmos inteligência, hoje sabemos que muitos seres são dotados de inteligência. Em seguida o argumento passou para uma concepção cartesiana – somos os únicos dotados de razão! – Talvez, embora sempre me parecesse que somos mais guiados por instinto “animal” que por alguma razão (basta sentar com algum psiquiatra e este lhe fará uma lista completa de nossa semelhança comportamental).
Há, porém, outra grande diferença, a ambição, somos seres ambiciosos isto eu não consegui perceber em qualquer espécie. A ambição é traduzida por alguns dicionários como desejo de poder, riquezas ou honras. A ambição nos torna mesquinhos, individualistas, egoístas.
Esta semana passei por uma experiência que deixou claro o quanto somos mesquinhos, aliás, a palavra mesquinho contém um significado dúbio, pois ela tanto pode significar escassez de recursos, pobreza, como também pode significar avareza. Voltando a experiência, eu estava feliz, orgulhoso por estar conduzindo meu filho até sua escolinha de futebol, para vê-lo estreando numa categoria acima da que jogou no ano anterior. Quando entrava no estacionamento do clube, uma moto em alta velocidade colidiu na parte traseira do carro. Eu saí, verifiquei se o motoqueiro estava bem, percebi que havia se ralado, nada mais. Enquanto ele levantava sua moto se desculpava dizendo que pagaria todo o prejuízo, quando eu fui olhar o que havia ocorrido com o carro ele pulou na moto e fugiu. Eu não resisti e fui atrás, tentei alcançá-lo, mas não havia como. O episódio ficou me atormentando até que decidi naquela tarde fazer um orçamento do prejuízo: Mil reais. Agora eu estava mais atormentado do que antes, imaginei que sonharia com aquele motoqueiro e no sonho eu o jogaria para o alto.
No dia seguinte menos atormentado, caminhei com minha esposa, li meu jornal e assisti o futebol. À noite recebi a notícia que a esposa de um amigo havia falecido em um acidente de carro, ele estava ao volante e voltavam de férias de Campinas para o Rio, quando o pneu dianteiro estourou.
Eventos como estes demonstram que nossa capacidade de apego as coisas materiais chegam a ser ridículas, ouvi de um amigo que o erro do socialismo foi desconsiderar o individualismo dos sujeitos, mas creio que o individualismo tal qual nos é representado não é uma característica a priori, mas uma fabricação social, uma construção histórica. Não somos nem individualistas nem comunitários, aprendemos e desenvolvemos tais aptidões histórica e socialmente. Assim aprendemos a ser generosos, solidários e gentis, mas também somos egoístas, individualistas e mesquinhos. Em muitos casos tais características tão antagônicas estão presentes em um mesmo sujeito, isso é, podemos ser especialmente generosos quanto a uma determinada situação e completamente mesquinhos no que diz respeito à outra situação.
A ambigüidade nos torna este ser terrivelmente complexo e estranho, como eu já citei nas primeiras linhas deste texto, mas não somos seres ambíguos por natureza genética, a ambigüidade também é uma construção social, o homem torna-se ambíguo, por diversas razões que não me compete dizer aqui.
Penso que o que realmente nos difere, é um pouco o que Marx sugeriu com sua metáfora sobre as abelhas, diferimos das outras espécies pela nossa capacidade de refletir nossa própria ambigüidade, quando no momento em que detectamos o quanto fomos mesquinhos em relação a alguma coisa, podemos imediatamente fazer algo generoso, ou sermos totalmente solidários, é provavelmente aí que somos fundamentalmente singulares como espécie.