Dois coelhos na mesma eleição
Pairava no ar um certo clima. Parecia que algo tinha que ser decidido com uma determinada urgência, nunca experimentada antes por aqueles pacatos povoantes. Entre um "richau" e outro de "fondue", no calor da lareira e do vinho, sob o olhar atento da truta posta num molho qualquer, em toda conversa lembrava-se o problema. Considerada uma comunidade participante, era inaceitável aquela angustiante inadimplência social. Já não era possível ficar olhando as águas do Rio Preto rolarem poluídas por entre as lânguidas pedras sem que uma correnteza de inquietação escorresse pelo ânimo adentro. Uma proposta! Urge uma proposta de ação, por mais absurda que pareça, mas de uma ação contundente, cabal, participante, tal qual julga-se a comunidade. Assim haveria de ser...
Lá fora ainda cantavam os sabiás, e a noite vinha chegando devagar. Toda a algazarra no Galpão Cultural justifica-se pois a primeira reunião, ocorrida pela manhã, decidira enviar uma representação militar ao Oriente Médio, para juntar-se aos tantos outros soldados de tantos outros lugares que ali se arregimentavam para impedir Hussein de dominar aquela gente.
O bingo realizado à tarde, para arrecadar fundos para a guerra, foi um fracasso, por ser ante-véspera de um feriado grande. Todo o dinheiro arrecadado dava para apenas uma única passagem – de ônibus, pela viação Serrana!
Mas ninguém desanimara. O motorista mostrou um grande espírito comunitário, providenciando um ônibus extra. Afinal, pela primeira vez, não ia viajar lotado...
Agora à noite, então, era chegado o momento da escolha do representante da comunidade, numa eleição cujo índice de abstenção quase zero, vem provar que sabemos e gostamos de votar, quando isso vale o esforço.
Teria que ser alguém cuja valentia e força bruta não deixasse dúvidas quanto às intenções da comunidade em resolver a questão do Golfo Pérsico. (Ainda que um só, que se bastasse!)
Teria que ser alguém que gostasse de uma briga, ainda que por motivo desmedido. Alguém que lutasse contra a razão, e a subjugasse como se fora seu dono.
Teria que ser alguém cuja voz pudesse ser ouvida mesmo à distância, para levar àqueles que oprimem a mensagem de paz da comunidade.
Teria que ser alguém que não medisse esforços para fazer prevalecer sua presença e opinião, pois, de outra forma, a nossa contribuição para a crise do Golfo Pérsico pareceria muito pequena, em se tratando de um único representante.
E voltaria triunfante, certo do dever cumprido, de haver imposto a ordem pública e a cordialidade entre vizinhos. No seu regresso, seria erguida uma estatua em praça pública. Bem, na falta de praça pública a estátua ficaria visivelmente instalada na rua dos cavalos, em frente ao “Chapeaux Noir”.
A noite já ia tarde enquanto se delineava o perfil do candidato a representante da comunidade, numa reunião jamais monótona. Toda a comunidade compareceu, apesar de ser ante-véspera de um feriado grande. Ninguém foi à Resende nesse dia, ninguém lembrou da hora da novela. A curiosidade em torno de um candidato era grande e, à medida em que eram propostos os requisitos básicos desse representante, um nome foi-se verbalizando nas discussões. Não haviam mais duvidas. Seria eleita aquela pessoa. Que sorte! A comunidade podia voltar à sua tranqüilidade costumeira. A paz estava próxima. Já estava definido o candidato. E que representante! Dá até para ficar com um pouco de pena dos turcos: vão ter que “encarar” essa!
***
O ônibus da Serrana estava atrasado, tamanho era o ajuntamento de gente em frente à Vendinha da Serra. Todos queriam ter a certeza de sua partida. E, olha, eram só quatro horas da manha! Alguns diziam: “QUANTO MAIS CEDO MELHOR”. Também, com uma missão tão importante, não podiam ter outra opinião.
O motorista foi logo avisando que não poderia ir até o fim da linha por causa do deserto. Alguém sugeriu alugar um camelo e muitos notaram um brilho no olhar e um leve sorriso de contentamento no rosto da representante eleita pela comunidade. Ela entendia do assunto. Afinal, camelos lembram, um pouco, cavalos.
Com a partida do ônibus da Serrana, rumo ao Oriente, a vida seguiu na direção da paz e da tranqüilidade. Turistas chegaram no feriado grande e encontraram tudo limpinho. Casais passeavam e crianças brincavam, sem nenhum receio, na rua transformada em área de lazer pelo nosso querido arquiteto. Flores de todo tipo espalhavam seu aroma no ar, despertando em quem ali passava, o interesse por outros cheiros que exalavam das iguarias caprichosamente preparadas nos restaurantes do local. Fazia calor naquela tarde ensolarada, um convite perfeito para tomar um sorvete. Vários tipos de pães, doces diversos, sanduíches e lanches rápidos não tinham outro endereço: Flor da Serra, a padaria do Maringá. Tudo estava normal...
***
Todo mundo sabe o que é um telefone, para o que ele serve e como usá-lo. Até aqueles dois papagaios empoleirados na porta do armazém do seu Chico poderiam falar no dito cujo, não fosse em Mauá. Aqui espera-se falar, é preciso muita paciência e sorte. "Vai telefonar" pode ser, aqui, uma ofensa tão boa quanto mandar para qualquer outro lugar. É quase tão desagradável quanto ir ao dentista, local onde também não se consegue falar.
Na longa espera, não pude deixar de ouvir aquela moça que, finalmente, conseguira sua ligação para o Rio de Janeiro:
- Allô?! Guerra? Que guerra? Ah!... A do Golfo... É... Ouvi dizer que o Saddan saiu do Kuwait. Ele finalmente começou a acreditar que as tropas conseguiriam atravessar o deserto e tomar Bagdá. Não mãe, com os tanques não. Eles enguiçam no meio daquela areia toda. As tropas jamais chegariam à Bagdá de tanque. Eles invadiram, mas foi de camelo. É isso mesmo, mãe. Olha, tinha uma brasileira na divisa, alugando camelos para as tropas. Como é que eu sei? Eu votei nela. Tchau mãe, depois eu explico tudo. Vou desligar porque só tem esse telefone, leva duas horas pra conseguir ligação, a fila está grande e já estão xingando a senhora. Se eu não chegar no domingo à noite, você liga pro banco e diz que eu fiquei doente.
Alih-Bena Eskina
Post-Scriptum: Eu tinha um desafeto. Essa pessoa hoje é morta. Mas mesmo tendo-a remetido por texto à Guerra não lhe tenho rancor. Acho que, no fim, tudo vira estória.