O Ilustre Escritor

Modéstia a parte, sei que vocês não vivem sem mim, seu ilustre e amado escritor! E todas as vezes que lêem as minhas belíssimas crônicas, ora entre sorrisos, ora entre lágrimas, saem com aquela agradável sensação de que algo nunca mais será como foi antes em suas vidas... Isso eu bem sei. Afinal, sou o ilustre escritor, aquele que desvela através de ousadas metáforas e de adjetivos suculentos o mistério do mundo, aquele que pronuncia o indizível, aquele que jaz com vocês debaixo do travesseiro, aquele que diz tudo aquilo que vocês queriam dizer e não tiveram a envergadura verbal para dizer.

Daqui, da minha poltrona predileta, com visão para o mar, vou escrevendo crônicas para a posteridade, escolhendo entre os milhares de assuntos aquele que mais despertará a atenção do meu pacato leitor. Adoro o ruído dos aplausos, recebo como quem recebe flores a bajulação. Saúdo os que me lêem e tiro-lhes o chapéu, num belo gesto de humildade, pois eles sabem que todo o amor do mundo, o canto do sabiá, a beleza do oceano e o sorriso da pessoa amada não vale uma linha da minha crônica diária. Essa tem um valor inestimável.

Daqui, da minha poltrona predileta, com vista para o mar, posso vislumbrar sobre a linha do horizonte, todo um futuro glorioso que se aproxima de mim com seus braços abertos; posso adivinhar no silêncio presente o estrondo de canhões da esquadra marítima nacional prestando-me suas últimas homenagens, e os humildes pescadores em volta do navio acenando saudosos os seus ei-ou tão generosos, e a numerosa multidão em cortejo fúnebre se espremendo debaixo de chuva para dizer adeus ao glorioso cronista que escreveu estas linhas.

Daqui, da minha poltrona predileta, na tranqüilidade do meu lar, vou fazendo severas críticas à política econômica do governo e a toda a sua corja de aliados inescrupulosos e corruptos. Bastam alguns poucos insultos e algumas ligeiras acusações sem prova, basta dizer que o governo é isto e aquilo, para arrancar o esperado elogio da platéia numerosa. Afinal, eu - o ilustre escritor - não critico o governo porque discordo plenamente do seu programa ou da sua administração, mas porque preciso acima de tudo ser elogiado por aqueles que o detestam. Eis a minha fórmula.

E ainda, daqui, da minha poltrona predileta, com vista para o mar, vejo chegar a justa notícia de que serei o mais novo membro da Academia Brasileira de Letras, ocuparei a famosa cadeira 23, antiga cadeira de Machado de Assis e que tem José de Alencar como patrono; vislumbro ainda a polidez da minha farda, a minha altivez sobre o púlpito dos imortais, o meu discurso de posse, tão loquaz, apoteótico, o maior entre todos os discursos já proferidos, e por fim a tempestade de palmas dos outros acadêmicos coroando e consagrando com bodas de ouro o seu literato maior. Tudo isso, senhoras e senhores, eu não pressinto, eu vejo. E com clareza posso vislumbrar ainda nos suntuosos museus, nas afamadas praças públicas e nas portentosas bibliotecas, as estátuas, quadros e bustos, dedicados a minha nobilíssima pessoa. E é com humildade que vos declaro: não sou mais um homem, sou um imortal, um best-seller, o ilustre escritor.

Senhoras e senhores, um brinde ao meu Nobel de Literatura!

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E no auge do seu êxtase megalomaníaco o ilustre escritor morde a língua, sua poltrona quebra-se ao meio, e as ondas do mar em tumulto, numa ressaca de mil impérios, devoram-no em questão de minutos.

E, enquanto isso, o cronista suburbano, sem poltrona nem vista para o mar, vai reconhecendo na crônica um gênero menor... pobre cronista que tem de seus apenas a barba mal feita e o cachorro vira-lata, vai espantando, com assombro no olhar, o monstruoso fantasma de sua terrível vaidade...

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Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 07/12/2008
Reeditado em 25/10/2009
Código do texto: T1323763