"Aborto Até o Nono Mês de Gravidez" =Crônica re-editada do cotidiano"
Interessante a lei proposta: poder livrar-se do feto até o nono mês de gravidez, quando ele já está formado e pronto para vir ao mundo.
Uma lei boa, humanitária, provavelmente idealizada por algum descendente de nazista sensível aos problemas femininos.
Aprovada tal lei, mulheres sem qualquer tipo de sentimento poderão livrar-se de incômodos filhos que só virão lhe trazer despesas, impedi-las de ir à baladas, de esbaldar-se na cama com os amigos, conhecidos, vizinhos ou parentes do marido.
Aprovada tal lei, e passado algum tempo, que tal propor a legalidade do extermínio antes que a criança complete o primeiro aniversário? As justificativas poderiam ser muitas: ela evacua demais, urina demais, não deixa os pais dormirem, o síndico está implicando com o choro, as despesas cresceram muito, o cachorrinho está enciumado com a nova criatura em casa, a carinha do bebê não é parecida com a de nenhum dos dois, o bebê morde a beirada do andador, não sorri para os tios e avós, e por aí afora.
Aprovada mais esta nova lei, que tal estender o direito de asfixiar a criança até às vésperas de seu quinto aniversário? As justificativas teriam uma ainda mais ampla gama à escolha: a escolinha está caríssima, a criança está respondona, o nariz dela escorre muito, o plano de saúde está pela hora da morte, a avó não combina com ela, a sem-vergonhinha às vezes mostra as perninhas, bate muito no irmão mais velho, e mil outras considerações poderão surgir.
Aprovada e em vigor a lei imediatamente anterior a esta, podia-se muito bem estender o direito de extermínio até o décimo aniversário de qualquer filho. Bastava escolher um método rápido e indolor e fazer um relatório: ele torturava insetos, atirou o pau no gato, xingou a filha da vizinha, assustou um cachorro de madame, assiste tevê até altas horas, quer porque quer um “play station” caríssimo, está engordando com coisas do MacDonalds, dá indiretas para ter roupas de grife, etc.
Aprovada e em vigor também esta nova lei citada do parágrafo anterior, poderia ser então aprovada uma novíssima lei, a última a mudar em nossa Constituição sobre este assunto: até as vésperas do décimo-oitavo aniversário do descendente, os pais teriam todo o direito de mandá-lo para o outro mundo desde que: tivesse tendência para o petismo, lidasse com drogas ou conhecesse, mesmo que remotamente, alguém que lidasse com drogas, comprasse moto para dar preocupação aos pais, exigisse uma certa liberdade para o horário de chegar em casa, gostasse de usar roupas e tênis caríssimos, curtisse músicas a uma altura absurda, tivesse mania de Orkut e outras bobagens da Internet, consumisse muito dinheiro na compra de livros, não ingressasse em universidades públicas e gratuitas, ou, o pior de tudo: que engravidasse mocinhas que poderiam praticar o aborto até o nono mês de gravidez.
Fernando Brandi
Publicado no Recanto das Letras em 10/06/2007
Código do texto: T520878