A Grande Cidade
Cidade Grande
Aqueles, que tiveram o privilégio de viver sua infância e puberdade numa cidade pequena, carregam consigo imagens e lembranças dessas fases coloridas de suas vidas.
Nessa fase os corações são bordados com uma ligação afetiva por cantos e recantos da pequena cidade.
Essa ligação funciona como as raízes para as árvores. Assim como as raízes retiram da terra a seiva, para que a árvore se desenvolva em copa, flores e frutos, essa ligação afetiva acessa recordações dos momentos vividos na terra e produz ternura, alegria e saudade no presente.
É muito difícil esquecer que as famílias, nas noites mais quentes, dormiam de portas e janelas abertas. Como não se lembrar dos espaços de quintais, praças, campos, lagos, rios e praias, quando disputamos com os carros um pedacinho de calçada para caminhar?
É muito difícil esquecer, quando se vive numa floresta de concreto, aquele contato próximo com a natureza: grilos, vaga-lumes, borboletas, gafanhotos, passarinhos, calangos, o correr gracioso dos pintinhos atrás da mamãe “galinha choca” e os pomares, tal como centopéias – pés de ata, biribá, açaí, bacuri, buriti, coco, ingá, tucumã, taperebá…
O banho nas águas do rio era acompanhado com a contemplação da dança do amarelo-gema das tenras penas dos patinhos com o lilás de flores silvestres. Balé sobre o espelho negro e misterioso das águas.
Ao sermos acordados pelo rugido ou grunhido desses monstros urbanos – os canos de descargas sem silenciadores – é praticamente impossível não nos protegermos com a doce sinfonia do solfejar de patos, galinhas, pássaros e perus dos quintais do passado.
Há algum tempo, o excelente filme brasileiro, São Paulo S.A. conseguiu retratar muito bem quanto é agressiva a cidade grande para aqueles que tiveram de deixar seus pequenos rincões.
A cena do filme que melhor retrata essa situação é aquela em que um trabalhador nordestino da construção civil, para exprimir sua revolta às agressões da cidade grande, sobe ao último andar da construção e, de lá de cima, mija na sua agressora.
A revolta com: o banditismo, quer o marginalizado, quer o institucionalizado; a mendicância; o abandono de menores e de idosos; a sinfonia macabra dos barulhos e ruídos urbanos; a “grafitagem”; a irresponsabilidade com os detritos e tudo o mais contrário às leis da Natureza, resultaram na mijada do nordestino.
“Lamento Urbano” é a manifestação em rimas, quase revoltadas, pelo desconforto da vida em cidade grande. É a tristeza pelo riso perdido nos espaços de outra distante e já quase morta – pequenina cidade.
Lamento Urbano
Grande Cidade Grande:
leito de mendigos;
toca de bandidos;
tela do grafite;
colo de menor abandonado.
O solo dos roncos dos carros
e da moto envenenada,
a marcação do bate estaca
são sua sinfonia acabada.
Grande Cidade Grande:
berço de detritos;
da praia poluída;
palco de delitos;
da violência instituída.
Há muito contigo convivo,
mas sempre uma saudade me toca,
por outra distante, ainda viva,
pequenina cidade, riso perdido.
Saudades, saudades
do cheiro de terra encharcada,
da lealdade do cão sem raça,
dos sonhos com esperança,
do teu verde bordando a praça
e dos tempos de criança.