Sobre amigos, máscaras e sapatos.


          Uma de minhas buscas existenciais é pela individualidade. Sei que sou um ser único no mundo, não há ninguém igual a mim e por essa razão busco encontrar minha essência verdadeira. Descobrir o ser que eu sou para que ele possa viver integralmente. E é aí que a porca torce o rabo. Sei que sou um ser único, mas sei também que sou mutável logo quem eu sou em um momento não sou mais em outro. A vida é feita de transformações. As coisas que vivencio me transformam. Tanto o meu mundo interno quanto o externo se modificam constantemente. E eu que gostaria de arrancar todas as personas que coloco no rosto para que o meu verdadeiro rosto possa aparecer nem consigo fazer isso porque nem eu mesma conheço meu verdadeiro rosto. Por mais que olhe no espelho não o vejo refletido porque não é no espelho que se reflete.
          Tudo isso bateu aqui no meu pensamento por uma questão corriqueira, embora séria. A amizade. Tenho uma amiga muito querida que um dia me disse: sempre exigi muito de minhas amizades, sempre fiz tudo para mantê-las, mas sempre me decepcionei. Até o dia que compreendi que eu tinha que compartimentar meus amigos e etiquetá-los – estes servem para a vida social, estes para a vida espiritual, estes para a vida emocional e assim por diante. Achei uma teoria engraçada, mas pensei no assunto e compreendi que era verdade. Eu tenho amigos com quem saio para me divertir, amigos com quem posso falar de coisas sérias, amigos que dividem comigo preocupações filosóficas. Amigos com quem falo de livros, outros de cinema. Alguns cujo único assunto é o trabalho. Amigos com quem posso ser criança, amigos para brincar de gente séria. Amigos bons para viajar. Outros para rir e chorar.  E isso faz de mim uma pessoa de muitas facetas embora todas as facetas sejam da mesma pessoa.
          Encontrei um trecho no livro Mapa do Mundo – crônicas sobre leitura, de Marta Morais da Costa que fala sobre o assunto. No capítulo Gosto porque me identifico ela transcreveu um trecho escrito pelo pintor Delacroix em seu diário e que trata exatamente desse tema. Delacroix disse que tendo alguns amigos se vê obrigado a ser um homem diferente com cada um deles porque para cada um ele tem que mostrar a face que o amigo compreende. E considera isso a maior miséria existente na vida de um homem: o não poder ser conhecido e sentido por inteiro por uma mesma pessoa. Delacroix vai fundo nessa consideração que acredita ser o soberano sentimento da vida – a solidão a qual o coração está condenado.
          Somos gregários. Precisamos do outro para viver. Precisamos de amigos. Precisamos de amores. E é esta a solidão que me deixa perplexa. A de nunca poder ser eu completa para outra pessoa. De ter que usar uma máscara para conviver com o outro de acordo com suas expectativas. E nem estou falando de fingimento. Eu acredito ser verdadeira em todos os momentos de minha vida. Mas eu sou como penso que a verdade é. A verdade para mim é como um brilhante multifacetado da qual a nossa razão percebe apenas algumas faces. Eu não sou um brilhante, mas sou uma pessoa de muitas faces. Em cada ambiente que estou uso uma face como se usa uma roupa. Não posso ir de roupa de baile ao churrasco. Quando uma amiga diz: reze por mim, eu digo rezo. De que adiantaria eu dizer a essa amiga que não sou de rezar porque não acredito que Deus atende as orações de seres para os quais ele deu o maior presente que é o livre-arbítrio? E que, na minha concepção a vida é uma corrente ininterrupta de causas e conseqüências? E que milagres não acontecem a não  ser quando as pessoas têm coragem bastante para romper esse ciclo e alterar as causas? Ela não está interessada no que eu penso, mas só na graça que quer receber.
          Para viver bem a gente tem que se exercitar todos os dias. Exercitar principalmente a compreensão para com o outro. Como diz um provérbio árabe que li em uma história policial – para descobrir o que aconteceu com o morto precisamos calçar seus sapatos – mas que dói, dói: estar sempre calçando os sapatos do outro e descobrir que ninguém se interessa muito por calçar os meus sapatos.