Faltou luz em Brasília
A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo
Eu, homem feito,
Tive medo e não consegui dormir.
(Teatro dos Vampiros - Legião Urbana)
Faltou luz em Brasília. Eis aí um acontecimento digno de nota. Acredito que esse simples acontecimento, tomado por alguns como desastroso, deveria ser tomado como um verdadeiro milagre. Não vou indagar aqui as causas, possivelmente técnicas, e nem me interessa a essa altura da madrugada sabê-las. Que me importa, pois? Sou um leigo no assunto com todo o direito a sê-lo, me ouviram? Se quisessem explicações mais técnicas que procurassem um engenheiro elétrico ou qualquer coisa que o valha. Um es-pe-ci-a-lis-ta, por assim dizer. Agora se querem um cronista, aqui vos tenho, a todo dispor, a prestar-lhes os meus humildes serviços.
Coincidência ou não, descobri que dou para cronista no mesmo dia em que descobri que não sabia de nada. Não é querendo bancar o Sócrates não, mas realmente beiro muitas vezes a burrice absoluta. E para não ser tão severo para comigo mesmo, direi simplesmente que sou um burro com ligeiros lapsos de inteligência. Mas sobre esse assunto da burrice tratarei numa outra oportunidade, por enquanto fiquemos com o milagre.
Vejam vocês, faltou luz em Brasília. Milagre que porventura nenhum argumento técnico - por mais consistente que seja - me fará retroceder um passo na minha humilde convicção. É um milagre e ponto. Milagroso tanto pelo o que há de extraordinário no acontecimento em si, como pelas incríveis possibilidades que ele encerra. Afinal de contas, dizer que faltou luz em Brasília é o mesmo que dizer: “Fulano transformou água em vinho”. Coisa mais comum nos paupérrimos subúrbios que a rodeiam, Estrutural, Varjão, e algumas das outras cidades satélites. “Como são tristes esses subúrbios...”; suspirará o poeta desconsolado, cismando no sofrimento daqueles que são freqüentemente surpreendidos pela falta de luz em suas miseráveis habitações.
Não discordo totalmente do poeta, que tem lá suas razões, mas o seu suspiro de descontentamento deixa escapar algumas coisas que são essenciais, como por exemplo, o do possível encontro com o outro. Sim, o outro. Esse ilustre desconhecido que convive ao nosso lado todos os dias e que sequer suspeitamos a presença: nosso pai, nossa mãe, nosso irmão, cachorro, e até nossa própria sombra. Eis aí a possibilidade da aproximação. Quem nunca, num desses dias que faltam luz, se surpreendeu com uma revelação bombástica do pai ou de qualquer parente? Imagino a cara das crianças, num desses blocos habitacionais da W3 Sul, se surpreendendo com a notícia de que o avô já foi palhaço de um circo muito famoso. “Palhaço e mágico”, dirá o avô. E começará a mostrar – exultante – algumas de suas inúmeras magias às crianças. Ele pegará a caixinha de fósforos com uma das mãos e, “vejam, aqui dentro estão todos os palitinhos”, e pedirá para um de seus netos fecharem o punho. “Fechei”, dirá o neto, ainda duvidando do avô, “seu mentiroso”. “Você não acredita, pois abra sua mão e veja”. O neto abre, e na sua mão estarão todos os palitinhos de fósforo, e a caixinha, por sua vez, estará vazia. “Uau! Como você fez isso vô?”, perguntará a netinha que acompanhava com os olhinhos esbugalhados. “Segredo de mágico”. O avô ainda apresentará, sob a precária luz das velas, outros números, tão ou mais interessantes que o da caixinha de fósforos; revelará o segredo de umas, ocultará o de outras, alegando que vai ensinar aos poucos, pedindo para que eles guardem tudo no mais absoluto sigilo. Seus netinhos vão jurar segredo eterno, e vão finalmente descobrir naquele velhinho, sempre tão quieto, um vovô muito legal, vovô que eles nem suspeitavam. “Ué vô, por que você não falou pra mim que era um palhaço?”. Num sei, as vezes acho que o palhaço não pode com a televisão...”
Enquanto o vovô vai fazendo palhaçadas com seus netinhos, no outro lado da cidade, num desses melancólicos apartamentos da L2 Norte, um estudante estará fumando seu cigarro na sacada da janela do 4º andar, perguntando a empregada a que horas ela acenderá as velas. Ela vai dizer que não tem velas e ele, por sua vez, receberá a notícia com certo aborrecimento. “Como não tem velas, o que você anda fazendo, que não comprou o diabo da vela?”. Após o desabafo, um silêncio vai se alastrar pela casa. Tudo é silêncio na escuridão da L2 Norte... Um silêncio que é de repente cortado por espasmos de choro. Choro abafado, choro de mulher. Preocupado, o estudante correrá atrás da empregada. Ela estará no sofá, encolhida, qual um bichinho acuado, com os olhos enormes a resplandecer na escuridão. Arrependido, pedirá algumas desculpas vãs, mas a empregada é apenas um choro impassível. Exausto, se sentará ao pé do sofá onde ela estará encolhida. Agora são duas criaturas mergulhadas na escuridão. Depois de algumas horas no silêncio absoluto, ela arriscará algumas palavras: contará das dificuldades que teve na infância, da adolescência difícil num canavial pernambucano; rememorará os pais que perdeu ainda moça, da longa viagem que fez para chegar nessa estranha cidade onde as pessoas sequer olham nos olhos das outras, "essa gente besta de Brasília!"... Depois, por alguma razão, começará a rir das próprias desgraças e se surpreenderá com o súbito choro do estudante. “Por que está chorando, Eduardo?”, perguntará. “Por que sou uma besta, Maria... Sou tão besta como essas pessoas que você falou”. Quando as luzes voltarem, Eduardo não estará mais sozinho, estará no colo de Maria, assustado como uma criança que acaba de se perceber no espelho.
E em qualquer casa ou apartamento da estranha cidade, a ausência de luz vai espalhando seus humildes milagres.
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