10 de Outubro de 2007. -  Salão do Fernando

          Acabara de cortar os cabelos, afinal no dia seguinte viajaria a Amsterdan e Helsinki. Tudo estava perfeito. Mala arrumada, euros comprados e uma noite de sono me separava da viagem. Saio do salão, ponho minha mochila com o computador no porta-malas e entro no carro. Em poucos segundos havia uma arma apontada para mim e quatro horas infindáveis de um sequestro nada relâmpago. Para mim foi uma eternidade.


               02 de Dezembro de 2008 - Sentado na cama


     Eu e minha esposa na cama. Ela me orienta num exercício em que invocamos, através de pesamentos focados, entidades que nos protegem e nos guiam. Foi difícil, afinal com a vida eletrizante que temos hoje, focar em certas coisas é algo hercúleo. Entrei na onda e consegui "visualizar-los". O primeiro guardião, vela por nossa integridade, seja ela física ou espiritual. Trata-se de um tigre, jovem, forte e solitário. Caminha com elegância e sempre atento aos menores ruídos. O segundo guardião, surprendeu-me ainda mais. Um guerreiro africano, não mais que 1,60 metro de altura, descalço, carregando na mão direita uma lança pelo menos meio metro maior que ele, e na direita um escudo de madeira com a forma de um olho na vertical. Seus olhos movem-se com rapidez e não perdem um movimento a sua frente. Minha visão deles é emblemática, pois os "vejo" um ao lado do outro. O tigre sentado ao lado esquerdo do guerreiro mostra as várias faces da proteção: a força e a inteligência, a experiência e o vigor.



               04 de Dezembro de 2008 - Salão do Fernando


          Pensava nos últimos 30 dias, enquanto me dirigia ao salão do Fernando para marcar um  horário. Fim de ano é sempre um problema  conseguir marcar 30 minutos para um corte de cabelo. Foram trinta dias de muita adrenalina, fortes emoções, grandes mudanças à vista, descobertas maravilhosas, enfim um mês de pura emoção.

           Chego ao salão e vou logo marcando o horário. A irmã de Fernando indica um horário para a semana seguinte. Aceito a proposta e ia me despedir do Fernando e do Wal. Quase de saída, Wal me chama. Da última vez que estive lá, duas semanas atrás, disse-lhe que naquela noite sairia com o pessoal do escritório para comemorar o aniversário de um funcionário e o meu também. 

          - " E aí Miguel, como foi a comemoração? Contei-lhe muito resumidamente, pois ele estava cortando o cabelo de um garoto. Perguntei-lhe se ele havia visto a tripla conjunção que ocorreu na noite de segunda-feira. Um espetáculo singular. A Lua, em fase crescente, formando um triângulo com Vênus e Júpiter foi um momento mágico naquela noite. Wal disse que não viu o fenômeno, mas que ouvira falar dele.

          Despeço-me e saio do salão. Da porta de madeira até o portão externo, que dá para a rua,  há um pequeno jardim que dá certo charme ao local.

          Depois do sequestro ocorrido 14 meses antes, tenho o costume de observar quem está na rua naquele momento. Várias vezes algum funcionário me acompanhou até entrar no carro. Encosto-me no portão e primeiramente olho à direita, e um homem numa bicicleta me chama a atenção, pois ele estava parado, encostado na guia da calçada e quando o encaro ele começa a descer a rua, na minha direção, porém do outro lado da rua. Ele nem pedala, simplesmente deixa a bicicleta ao sabor da gravidade.

        Olho para o lado esquerdo e um homem sobe a rua com um pequeno saco plástico na mão direita e muito perto do muro. A camisa por fora da calça me faz ficar mais atento. A altura e o porte físico lembravam muito o meliante que um ano atrás me arrancara uma boa quantidade de dinheiro e algumas noites de sono. Não pestanejei. O próprio sequestrador disse-me durante as quatro horas de cativeiro, que toda a precaução é pouca....se você desconfiar de alguém, não tente tirar a prova dos nove. Fuja!!!!

         Voltei ao salão e disse ao Fernando que dois homens suspeitos estavam à espreita perto do salão. Ele põe a mão no bolso e diz:
          "Vamos lá fora. Vou com minha pistola e tudo se resolve"!!!!!! A coisa ficava cada vez mais surrealista.

        No momento que saímos do salão e nos dirigimos ao jardim, o homem que carregava a  sacola passa olhando de soslaio para nós. Tive a impressão de que não era o f.d.p. que me sequestrou. Naquele momento o vi somente de costas. Esperamos um pouco e fomos até o portão para verificar se ele já estava longe ou não. Ele continuava caminhando porém muito mais lento que antes. Esperei até  ele estar a uma distância razoável. Olhei uma vez mais para os dois lados da rua e entrei rapidamente.

         Sem perder tempo, ligo o carro e continuo observando o tal fulano da sacola plástica. Engato a marcha e vou em frente. O Fernando já estava dentro do salão quando o carro começa a andar. Ligo o toca CD e uma música dos Paralamas do Sucesso me relaxa da situação daqueles últimos minutos. Quando estou a uns 50 metros dele, baixo um pouco o vidro do lado direito, já que por ter Insulfilm instalado nas janelas, a visão não seria tão fiel.

          Quando estou a poucos metros dele, olho para a direita, e ele como se esperando pelo contato visual, também me encara. Um calafrio percorre todo meu corpo. Era ele!!!! Com certeza era ele!!!! Durante o sequestro, eu o vi quase o tempo todo de perfil. E naquele momento, a poucos metros dele, a intuição se confirmava. O cachorro iria tentar uma vez mais. Como num flash de memória, a única coisa que havia gravado em minha mente do parceiro do sequestrador, era o cabelo. Quase um Black Power. Pois este era o cabelo do ciclista que aguardava do outro lado da rua. O comparsa dele era o ciclista!!!!!

        Foram segundos de pensamentos variados: jogar o carro em cima dele, chamar a polícia......eram várias as  possibilidades. Uma paralisia, misturada com ódio e vontade de trucida-lo.

        Imediatamente uma imagem, como um pano de fundo, formou-se em minha mente. Por algum tempo, não conseguiria mensurar quanto, senti a presença dos guardiões recém apresentados. A imagem dos dois, lado a lado, foram minha única visão. Os olhos do guerreiro africano me encararam e um leve sorriso partiu da face daquele pequeno homem. O tigre sentando, observava tudo. Havia uma espécie de escuridão que envolvia os dois guardiões, como se estivessem dentro de uma caverna.

       Tranquilizei-me e decidi ir em frente. Nada de voltar, nada de chamar a polícia, e muito menos de atropelar o tal meliante. Uma força me empurrava para frente e obedeci a essa ordem. Tudo estava justo novamente. Tudo estava perfeito. Acredito que estes fatos ocorreram para confirmar o que ainda era uma dúvida: que há uma parte de nossa alma que nunca nos abandona, que nos protege sob quaisquer circunstâncias.

      Somos animais por excelência, e divinos por natureza. Somos o duo. Somos o Uno. Somos Deus.