"Crônica do Dia Feliz"

Hoje quando acordei, dei de cara com um sol imenso, imenso... e vibrante! E ele me deu um abraço tão delicioso, constrangedoramente incondicional, que só mesmo pude sentir nisso coisa de pai, de mãe, de Família! E o meu dia já começou muito diferente e especial. Um sol muito mais brilhante e nítido do que de costume, mas ainda muito menos intenso e quente do que as paixões que vivi e tenho.

E um vento fresco alisou a minha face, refrescando-me a alma e soprando alívio sobre as feridas ainda abertas pelas pedras do caminho percorrido; dando-me ainda mais viço e mais coragem não para mais um ano inteiro de vida, mas apenas para mais um dia. É desta forma que eu prefiro: essa miudeza flácida de que é composta a nossa existência, esse esgarçar de um segundo pela infinitude. E esse mesmo vento é o que agora entra por todos os meus buracos, faz ciranda ao redor da minha cintura, e varre de todos os meus cantos as mais periféricas emoções e lembranças; para que na revolta dos meus fluidos, eu me sufoque, asfixie-me, engasgue e vomite exatamente estas palavras.

E o dia foi-se tecendo sem grandes surpresas, porque também foi

assim que escolhi o hoje: mole... Suficientemente capaz de me enrolar

naquela manta macia da boa monotonia, que nos traz sempre uma certa dose de paz, de que tudo está ou ficará bem. De que tudo está ao menos sob controle: sob o controle do Tempo (e como a gente reconhece isso simultaneamente ao reconhecimento da própria impotência, é saudável não resistir à convalescença e se entregar ao processo).

Este é o mais diferente dos presentes que recebi: quietude. Porque no resto dos meus dias sou puro devaneio e anseio, pura tentativa. Só tentativa. E sei que sempre estarei assim: tentando, alcançando, tentando, conseguindo, tentando outra vez... Intercalada, raras vezes, por pausas impostas pelo instindo de sobrevivência do próprio coração: quando ele, estafante, quase pára; quando o espírito em sangria desatada, mudo grita (que às vezes nem a gente escuta). Talvez o passar dos anos mude alguma coisa, mas ainda acho pouco conveniente; e sinceramente, acredito que quase nada tem isso a ver com maturidade e sabedoria - nesta concepção sisuda e sombria por que alguns as tomam hoje. Trata-se, sobretudo, do ritmo que se dá à existência. É este o meu modo de vida e de morte.

A noite me veio como um negro cortinado de pesado veludo, que se

abriu para o mais belo espetáculo de estrelas. A lua, nem sei qual

temos hoje, mas para mim ela está minguante e crescente: minguando

um pouco de mim, crescendo um pouco de um outro "mim". E as

estrelas... bem, as estrelas insistem naquele espetáculo, que eu nem levo muito a sério. Nele eu me perco. Distraio-me, porque resolvi contá-las (minha mãe me disse que a gente não deve contar estrelas porque nasce verrugas, mesmo assim eu desobedeci e espero que amanhã eu não tenha uma desagradável surpresa a frente do espelho). Uma a

uma eu dei nomes: Carlos, Sônia, Mayara... é bom dar nomes, e o seu nome a uma estrela também dei: daquelas brilhantes e grandes. E este é o meu céu, de estrelas nascentes e cadentes.

Agora, através do vidro da minha janela, reparo nestas estrelinhas

que formam um colar de cristais em torno da Lua. É Lua-Eu,

que agora está mais cheia do que nunca. Quase pocando. Abrindo rachaduras. Quase se arrebentando de não sei exatamente o que, mas me sussurrando que devo dizer a vocês, senhores, que se preparem, porque com os meus vinte e dois anos, eu estou apenas... Começando!

Hoje é dia de Lua Nova!