TANTAS BOBAGENS
Li em algum lugar que o material para uma crônica pode ser retirado das situações do dia a dia. Seja de uma pequena bobagem ou de um grande acontecimento, é possível retirar alguma perspectiva especial, algum ponto de vista que somente você conseguiu captar.
Fico imaginando que o Buda seria um péssimo cronista. Sim, pois a doutrina budista diz que o iluminado não via as coisas como nós, mas apenas constatava a realidade tal qual esta se apresentava. Portanto se há alguma coisa de útil que podemos fazer com os filtros de nossas interpretações errôneas da realidade, esta coisa se chama crônica. Talvez quanto mais distorcida a visão de mundo do cronista, maior será o seu sucesso. Deve ser por isso que o Buda nunca escreveu coisa alguma, ou seria ele analfabeto?
E por falar em matéria-prima cotidiana, ao chegar ao trabalho pensei no que escreveria hoje para minha crônica vespertina, logo veio a idéia. Há em meu trabalho uma mulher que é responsável pela feitura do café. Esta senhora, não sei o porquê, toda vez que me vê esfrega o dedo polegar no médio, fazendo aquele gesto que significa dinheiro. Ela me pergunta se tenho “algum” para lhe dar. Respondo-lhe sempre com um sorriso amarelo nos lábios. Vou lhe dizer o quê? Por acaso sou algum agiota? Tenho aparência de milionário?
Esta mesma senhora, viúva, também faz sempre outra brincadeira um tanto inusitada; ela diz que coloca arsênico no café para que eu vá morrendo devagar. Ouvi de algumas colegas que o marido da citada senhora morreu no ano de 1994 e até hoje não se sabe qual foi a causa mortis. Deus me livre!
Porém este fato é muito trivial, geralmente os leitores preferem mais ação. Talvez meus escritos não sejam o melhor lugar para se procurar por ação. Contudo, foi no final do expediente que aconteceu a matéria principal desta crônica. Eu já estava no ponto de ônibus indo para casa, quando ouvi um rapaz dizendo “Olha lá! O rapa chegou!”. O rapa, juridicamente, significa a fiscalização da prefeitura que tem o poder de apreender mercadorias de vendedores ambulantes que não possuem autorização para vender seus produtos.
Olhei para traz e vi os guardas municipais, os fiscais, um caminhão e o vendedor que tentava convencê-los a não levar suas pequenas árvores. Estas eram dezenas de pinheiros que o ambulante vendia para as comemorações do natal. O rapaz que falou “Olha lá! O rapa chegou!”, começou a fazer seus juízos de valor sobre o evento, olhando para mim, disse ele: “É foda, né meu! Pai de família dando um trampo e esses cara não deixa o cara trabalha! É foda, né? Por que esses filhos da puta não vão corre atrás de bandido?”
Uma senhora expressou, inconscientemente, um pouco de filosofia determinista com a seguinte frase: “É... aqui se faz aqui se paga. Eu sempre digo isso!”. Tal senhora fazia alusão a uma possível feitura de justiça por obra divina. Um senhor que não possuía os incisivos inferiores, com a barba por fazer e com um boné encardido soltou esta: “Vão pega tudo pra eles. Seis pensa que vai pro depósito? Vão dividi tudo entre eles. Esse Kassab não vale nada mesmo!”
Então as pessoas que mal se falavam começaram a contar diversos casos, sempre com seus juízos de valor como premissas inquestionáveis, como se suas opiniões fossem verdadeiros dogmas. Ora, não é a lei, no Estado Democrático de Direito, que deve ser obedecida acima de qualquer coisa, não vale aqui o brocardo latino Dura lex, sed lex?
Obviamente, estes populares não fazem idéia do que seja um Estado Democrático de Direito, não conhecem brocardos latinos e seus juízos de valor refletem apenas repetições de idéias desgastadas.
Não sei por que alguns intelectuais defendem o povão retirando destes toda a responsabilidade por sua ignorância e atribuindo todas as mazelas sociais ao Estado. Será este capaz de atender a todas demandas de nossa população? Certamente há uma grande injustiça no ato de apreender mercadorias de um pobre trabalhador, mas não é dever do cidadão ter fundamentos sólidos para questionar o que considera injusto? Precisam, os populares, sempre dizerem tantas besteiras?
Pensei comigo; bom seria se todos fossem como o Buda, não haveria cronistas, mas seríamos poupados de ouvir tantas bobagens enquanto esperamos um ônibus.