AMORES DE INTERNET

Quando se escrevem crônicas contra os amores de internet, não raro se faz a pergunta sobre se relações deste tipo devem ser consideradas amor. Autores baseados, talvez, na idéia de pôr como irreal tal relacionamento. Mas tanto a pergunta quanto o conceito de real daqueles são do retrasado, não duvido que creiam num romantismo meloso e universal. No século XIX não havia internet. Em nosso tempo, mas coerente seria perguntar, investigar que tipo de amor é esse.

Os anos da história deveriam supor um grande avanço em todos os campos da experiência humana. Contudo, cá estamos pelas linhas alheias no século XIX... De onde as propaladas luzes do século anterior na melhor das hipóteses poderiam ter escancarado a face verdadeira e livre do amor, que tanto enjaulamos.

Em toda liberdade prática subjazem limites. Então, há limites éticos para o amor, ou pelo menos para sua consumação. O exemplo batido do estupro muito nos tem a ensinar, algo que há bem um mês ouvi uma mãe dizer ao filho, quando eu dobrava uma esquina: “brincadeira que um não quer brincar não é brincadeira”; ou, para uma analogia: “quando um não quer dois não brincam (sic)”.

Fico me perguntando quantos não apontarão este texto e dirão do pecado que há em distar tão pouco entre si “estupro” e “brincadeira”. No entanto, o parágrafo anterior é muito procedente. Afinal, aquele bom leitor notará que justamente a ausência de acordo recíproco entre as partes leva a um crime o que seria agradável como uma brincadeira.

Mas dizê-lo é tautologia. Isto porque já está pressuposto: se o amor é pela liberdade, a privação dela de qualquer modo é a sua desconstrução fundamental, universal. Amor sem liberdade não é amor. Amor sem liberdade não é seu inverso nem se contrário, mas seu oposto. Camões nos ensinou quanto diverso é o amor, a ponto de ser o seu contrário. Mas seu Oposto existe, destoa da liberdade, destoa da diversidade.

Adultos sãos são responsáveis pelas atitudes que tomam. E é muito claro para mim que liberdade supõe escolhas conscientes, autônomas, de tal sorte que, a meu ver, ponderar as escolhas de um ser humano até que ele venha a ser consciente por completo é fomentar a liberdade. Reacionário? Não. Sou contra considerar, como fizeram em nosso passado recente, uma criança como incapaz de consciência em toda atitude. Sou a favor da proteção integral.

Portanto, se nós, adultos, que algo da vida conhecemos, tomamos decisões absurdas para nós, quiçá o caráter corrosivo que têm atitudes passionais e inexperientes dos muito jovens para toda sua vida. A função do adulto em relação à criança é guardá-la até sua autonomia total. Esta que suporá até a liberdade para que o novo adulto cause dano a si mesmo, mas jamais a outro adulto ou criança.

Este último caso é um exemplo claro. Afinal, um adulto que cause dano a outro com a permissão deste último não está sendo antiético – ademais, para aguçar a boa filosofia, um “dano permitido” não perde seu caráter de dano? Por outro lado, sua atitude, diante de uma criança, mesmo com a permissão do pequeno, deve ser vigiada pelos adultos de forma geral, sobretudo quando parece danoso.

Cabe definir o que torna alguém adulto e, embora pese imensamente, não é só a idade que o diz.

À parte a definição de adulto, suponhamos que eu o seja. Se resolvo entrar numa sala de bate-papo, encontrar alguém e me casar, de que autoridade dispõem autores, senão poder sugestivo, para me dizer algo? O novo causa medo, é sabido... A idéia de que talvez os sentimentos e, com certeza, a forma de realizá-los muda assusta a alguns dinossauros como um zepelim sobre suas cabeças.

Não importa o que consideram sobre o que eu faço se o que faço não priva liberdades reais. Se são adultas as pessoas com quem me relaciono. Salvo engano, foi Freud que disse que o único comportamento sexual anormal é o não sexual; de lá evoluímos até a liberdade amorosa. Mas são incansáveis; alguns são tão incansáveis que chegam a afirmar que os da internet relacionam-se com máquinas! Poético, não? Mas se fosse, e daí?... Mas comumente se trata de AI (amor na internet), e não de IA (inteligência artificial).

Ou estou louco, ou é claro em minha cabeça que são duas ou mais pessoas em lugares diferentes através de um equipamento de comunicação que se relacionam na internet, geralmente. É bem verdade que muitas patologias são associadas à internet, à vida social digital. E que algumas sensações do corpo a corpo, vis-à-vis, são diferentes das mediadas por computador. Porém tanto erram aqueles que vêem as relações “virtuais” como somente prejudiciais, quanto aqueles que as concebem ao pé da letra como virtuais.

Não são virtuais, as relações existem. A consumação de um sentimento não tem o monopólio de sua realidade. Ou seja, se há sentimentos que se definem por não terem consumação, é absurdo dizer que um amor só existe se for consumado com algum toque. É mentira. Que se pergunte a alguém que ama desta maneira se não existe o que sente. Que se pergunte a seu íntimo se não nega o que sente apenas pela nocividade do que as pessoas “acham”.

Dizer que não sinto o que sinto é reduzir o que sinto a nada. E se o que sinto é grande parte do que sou, o próximo passo é eu mesmo negar-me como sujeito. Depois disso dirão, então, que o que sentem é o que é verdadeiro. Depois serei menor por não concordar com a verdade, terei de abaixar a cabeça para os que são “normais”? Mas que verdade é maior que a democracia? A escolha dela não é uma unilateralidade, pois é a “escolha” de tudo, ou da convivência deste tudo.

Se determinamos uma patologia estamos nos baseando na alteração de uma “normalidade” do organismo. É simples para as doenças físicas comuns, mas, e para a psicológicas? Tenho uma amiga psicóloga, nas mãos da qual deixo algumas questões e espero que ela me seja completa em suas respostas. Ela diz que espero demais dela – sugere então que é prejudicial sobretudo a mim este comportamento. Não me julga pelo que eu devia pensar, mas pelas conseqüências do que faço.

Não me agride ou condena. Não diz de mim anormal. Sei que ela me quer o melhor, porém estaria em seu direito de me deter caso eu lhe prejudicasse (de fato); diria com plena razão que eticamente estou anormal. A normalidade ética é clara, a meu ver: respeitar as atitudes alheias que estejam no círculo de sua liberdade. Comportamento que é muito associado à amizade, mas que deveria ser universal.

A propósito, conheci aquela amiga na internet.

Algumas pessoas, tão logo surge um problema na vida social, procuram a internet – ciclicamente ou como pontapé inicial; outras associam curiosidade e psicopatia. Estaria me contradizendo se não dissesse em que termos considero mentalmente doentes essas últimas pessoas. Faço isso no sentido de que estas pessoas dedicam-se a prejudicar outras de qualquer forma, a internet é só uma ferramenta, seja a única ou uma das quais. Mas o problema está na internet?

É fato que, por exemplo, armas são vendidas principalmente com o objetivo de matar pessoas, de modo que devemos ter cuidado em afirmar que são os homens, e não as armas, responsáveis pelas mortes à bala. A internet também é um meio, entretanto, por seu lado, o objetivo não é prejudicar pessoas. Pelo contrário! as pessoas prejudicam a imagem da internet com certas atitudes.

Quanto à relação da vida social convencional com a internet, a primeira coisa que devemos considerar é que não se anulam necessariamente a vida social convencional e a “em rede”. Mas isso ocorre muito, dos dois lados: ora a nulidade da vida social tradicional guina a pessoa a uma válvula de escape de nome internet, ora esta senhorita monopoliza a vida do ser humano. E não raramente a relação entre as duas situações é uma ordem cronológica crescente.

Às pessoas que passam muitas horas diante do computador, podemos sugerir que a vida social tradicional é uma ótima contribuição para a experiência delas. Podemos dizer-lhe dos males que aquelas longas horas lhe causarão. Por outro lado, as pessoas que não têm vida social na internet podem aprender alguma coisa com as que têm, no sentido de que devem experimentar sentimentos – ou formas deles – diversos. Nós, com todos eles, aprender que a diversidade do amor é construída a cada segundo. Entender que quem pilota o zepelim é de carne e osso e que para flutuar devemos sair do século XIX.