Sonífero

Dizem que a noite é uma criança, mas acho que dependendo do estado de espírito de cada um pode muito bem se tornar um natimorto. A disposição para se encontrar o que fazer numa noite é inversamente proporcional à disposição usada para se cumprir a rotina do dia.
A noite é um castigo aos insones, uma benção aos cansados e um caixa de oportunidade aos corujões. É quando o desespero chega, a saudade aperta, o medo assola a inspiração aparece como que do nada, e principalmente, a solidão esmaga lentamente milhões (ou quem sabe bilhões) de corações ao redor do mundo.
Ainda assim a noite consola. É nela que muitos esquecem do dia, ou lembram conforme o caso ou a necessidade. É também na noite que ocorrem os sonhos, visões paranóicas de uma realidade paralela onde tudo que mais queremos, mas nunca admitimos, acontece, só que não necessariamente da forma que desejávamos. Muitos descarregam suas frustrações no travesseiro sobre a cama, enquanto outros recorrem à fuga mais comum: a televisão, para os que além de frustrados há muito perderam a criatividade.
Há ainda outros que não desistem e buscam desesperadamente o que fazer só para não ter que passar a noite em casa. Nessa importante busca, destinada a não permitir que a noite seja apenas o dia sem a luz do sol, faz-se de tudo um pouco, alguns até mesmo aceitam os convites persistentes dos amigos para as noitadas que provavelmente irão fazer questão de esquecer no dia seguinte, isto se realmente se lembrarem do que aconteceu na noite anterior.
Por isso vai aqui uma descrição de como pode ser a sua noite, caso aceitem todo e qualquer convite para baladas promissoras. Vamos a uma breve narrativa: ás seis horas o sol começa a se por, é o começo, planos são traçados e uma grande porta se abre; as pessoas começam a imaginar toda a diversão que está por vir, os lugares a que irão as coisas que vão fazer, as pessoas que vão conhecer, é o início da vida que na verdade sempre é planejada por outras pessoas: os amigos que te convidaram pra sair.
As sete, muita coisa já aconteceu, principalmente as frustrações, o pneu do carro furou e você e seus amigos vão chegar atrasados àquela festa pela qual você esperou ansiosamente quase um mês inteiro; você descobriu um pouco tarde que aquela pessoa que você queria conhecer também não vai estar lá, e a essa altura você começa a acreditar no destino - ou quem sabe em carma; e para completar os mais animadinhos do grupo patético do qual você infelizmente faz parte, já encheram a cara com as cervejas compradas na primeira parada no posto de gasolina, e já “um pouco altos” cantam as músicas mais pedantes possíveis durante todo o trajeto.
Às oito, ao chegar à festa, você percebe que esqueceu a sua carteira em casa, seus amigos começam a reclamar dizendo que você fez de propósito só para não ajudar a pagar a conta, e aquela pessoa que você simplesmente não suporta mas que há muito tempo vive te assediando decide ficar a noite inteira no seu pé te obrigando a fugir durante toda a noite. A partir daí as horas passam lenta e vagarosamente, n o v e, d e z, o n z e, d o z e horas, e você começa a se perguntar porque diabos foi sair de casa, e a esta altura também você começa a achar extremamente confortante imaginar-se em casa sozinho, sentado no sofá só de cuecas assistindo aos filmes mais chatos possíveis na televisão. Bem pra resumir lá pelas tantas da madrugada você deseja desesperadamente sair daquele inferno, mas você se lembra que está sem carro porque aceitou a idéia idiota de ir no carro do seu amigo para economizar gasolina, e principalmente se recorda de que esqueceu a carteira e portanto não tem dinheiro sequer pra chamar um táxi.
Resignado você se senta a um canto completamente desolado e taciturno refletindo em como desperdiçou uma noite inteirinha, só porque achou que a pior coisa que você poderia ter feito com a sua noite era ficar sozinho em casa.
Por isso da próxima vez que você for convidado para uma balada e te disserem que vai ser inesquecível amigo, pare, reflita, respire fundo e analise todas as possibilidades. E se chegar à conclusão de que poderá vir a se arrepender se pôr os pés fora da porta do seu seguro e aconchegante lar, espere aquela vontade incontrolável de sair de casa passar, daí sente-se no sofá tome o sonífero mais potente que estiver à sua disposição e tenha a melhor noite de sua vida. Bons sonhos.