Merdafísica
Banheiros públicos parecem atrair o tipo de gente que gosta de espalhar asneiras. Sempre que, vez ou outra, preciso usar um deles, me perco na quantidade de merda que os egrégios freqüentadores que lá estiveram antes de mim costumam deixar nas paredes e na porta – tanto aquele ignóbil traço marrom disforme quanto a bosta em forma de palavras, cagada de um lápis, uma caneta ou um pincel atômico. E eu, mesmo sabendo se tratar de coisas desagradáveis e com o único propósito de dar vazão à diarréia mental alheia, não consigo deixar de ler o que escrevem. Talvez seja por conta do meu vício em leitura. Talvez seja por conta de uma esperança que guardo de encontrar alguma coisa que valha a pena ser lida. Afinal, inspiração brota nos momentos mais diversos: por que não numa cagada?
Certa feita, numa manhã sonolenta de sábado, estava aguardando minha aula de Psicologia Aplicada à Administração quando meu intestino mandou aquele inequívoco sinal de desconforto: uma pequena pontada aguda, da direita para a esquerda, que me fez arrepiar todo e respirar fundo. Olhei em volta. Do outro lado do bloco, perto dos Centros Acadêmicos de Biologia e de Medicina Veterinária, encontrei minha salvação. Aproveitando que a coisa toda ainda estava “gerenciável”, caminhei ao sanitário devagar – a pressa de se aliviar parece, nessas horas, também apressar a ânsia do excremento em sair. Fui à última porta dentro do sanitário, entrei, fechei o acesso e conferi a privada. Coisa que detesto é gente que urina em torno do vaso sanitário. Molham até o chão, algumas vezes! Depois de cuidar disso com alguns bons centímetros de papel higiênico, baixei as calças e sentei-me, finalmente.
Engraçado como aliviar as tripas pode ser tão prazeroso. Um colega de curso do meu primo mais novo, que faz Artes Cênicas, disse que cagar é bom demais porque “parece que tem uma rola saindo do cu”. Ele deve ser viado. Mas isso não vem ao caso. Além do mais, não quero que o corajoso, ou a corajosa, que esteja lendo isso tenha engulhos com meu excesso de descrições. Continuemos.
Ali, sentado naquela privada, ruminando o alívio da evacuação, pus-me a ler as coisas que haviam sido escritas nas paredes e na porta do cubículo. “Quero chupar um negão”, “lá fora você é macho mas aqui é um cagão”, “quero dar o cú” (assim mesmo, com acento para dar maior ênfase) era o tipo de coisa ali escrita. Um que me fez rir foi “caguei 1 kg”. Nunca tinha visto antes. Foi no meio daquela merda profusa em letras e acentos que li uns versos que me fizeram ficar surpreso:
"E nunca haverá uma porta
E o cárcere abarca o Universo
E não existe anverso nem reverso
Nem externo muro
Nem secreto centro"
Era a primeira vez que eu via alguma coisa do tipo. Li de novo, e mais uma vez, até que eu tivesse gravado mais ou menos aquelas palavras. Limpei-me, dei a descarga, lavei as mãos e fiquei tentando repetir as palavras na cabeça. Inútil. Minha memória de curto prazo anda muito ruim. Não hesitei: logo voltei à sala da qual estava, peguei caderno e caneta, voltei ao banheiro e anotei aqueles versos da íntegra. Como não havia traço de autoria, releguei-o ao famoso Anônimo. Só depois fui saber, pesquisando no Google, que o que li era, na verdade, um trecho transcrito de maneira errada de um poema de Jorge Luis Borges intitulado Labirinto. Eis o poema:
"Nunca haverá uma porta. Estás cá dentro
E a fortaleza abarca o universo
E não possui anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que obstinado se bifurca noutro,
E obstinado se bifurca noutro,
Tenha fim. É de ferro o teu destino
Como o juiz. Não esperes a investida
Do touro que é um homem, cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe evasão. Nada te espera.
Nem no negro crepúsculo a fera."
Hoje de manhã, semanas depois do ocorrido, tive de usar o mesmo banheiro novamente. Ia me encaminhando a um dos boxes quando lembrei do poema na porta do sanitário. “Será que há algo novo por lá?”, pensei. Fui ao último cubículo. Dessa vez, estava com meus materiais. Apoiei a bolsa num registro quebrado, fechei a porta, limpei a privada e me acomodei.
Excelente surpresa tive ao ver que havia mais alguns versos ali. Não na porta, mas na parede esquerda. Assim estava escrito:
"No cu
Do urubu
Afloram os restos do coração
De um homem
Apreciados numa refeição
Mas rejeitados pela digestão
Porém, mais limpos que o coração
De um outro homem"
Saquei caderno e lapiseira da bolsa e, sem pestanejar, anotei o pequeno poema. Também não havia indicação de autoria, e, dessa vez, nem mesmo o Google pôde me revelar de quem se tratava a pequena obra. O curioso de tudo é que este notável anônimo, ou esta notável anônima – o que impede uma mulher de entrar no banheiro masculino nos dias de hoje? –, foi a única pessoa que correspondeu às minhas expectativas de encontrar sinais de vida inteligente num banheiro público.
“É fazendo merda que se aduba a vida.” Certamente este pequeno adágio jocoso adquiriu novo sentido para mim.