Biscateiro

Se a troca de um país para outro pode provocar situações engraçadas e constrangedoras àqueles que enfrentam uma nova língua, a mudança de estado pode levar a circunstâncias pitorescas.

Assim aconteceu a um menino de dez anos, entrando na escola no meio do terceiro bimestre, ao ser indagado pelos colegas pela profissão dos pais.

- Minha mãe faz tudo: costura, cozinha, limpa, emenda, reforma, ajuda em outras coisas. Mas os serviços dela são sempre em casa, para não deixar a casa sozinha.

- E o seu pai, perguntou o colega de cabelos engraçados, segurando com a mão esquerda um picolé que insistia em se manter intacto.

- Meu pai é biscateiro.

A sorveteira olhou para trás bruscamente, tentando identificar a fonte da informação. Perguntou ao menino, de maneira graciosa, qual a profissão do pai. Receoso do interesse súbito de uma mulher que nem conhecia, amedrontou-se. Porém repetiu em alto e bom som assim que viu um picolé de chocolate depositado nas mãos.

- Biscateiro! Meu pai é biscateiro! E biscateiro dos bons! Biscateiro com B maiúsculo. Biscateiro mesmo. Bis-ca-tei-ro!

Enrubescida, subiu na bicicleta e pedalou rapidamente para o lado leste da escola à procura da porta de acesso à rua das Alfândegas.

Após o recreio e antes do término das aulas, a notícia do biscateiro na cidade causara alvoroço entre as mulheres. A caminho de casa, o menino percebia olhares diferentes, sorrisos cúmplices, gestos discretos. Da padaria ao açougue, da papelaria à farmácia, do supermercado à banca de jornal, do posto de combustíveis ao corpo de bombeiros, do quiosque de informações turísticas ao conservatório musical, da livraria ao parque.

- O que fizeste hoje? O menino percebeu o tom de voz alterado. Acabei de receber um comunicado dizendo que devo acompanhá-lo à escola amanhã. Nem duas semanas completas e já me arranjas confusão? Quebro-te na paulada se receber reclamações! Quebro-te inteiro!

No dia seguinte, antes das 13h, pai e filho entravam na escola. O filho na sala de aula; o pai, na da diretora. Em poucos minutos pai e diretora saíam sorrindo. Compreendeu a situação quando durante o jantar o pai explicou o mal entendido. Que ali, “biscate” e “biscateiro” possuíam significados diferentes daqueles usados em seu estado de origem e que, depois da explicação, ele e a diretora menosprezaram a notícia transformada num furo de fofoca.

O pai ainda contaria mais alguns detalhes, porém foi interrompido pelo telefone.

- Alô. Da casa do pai do Marcelo? Ele quem fala? Que beleza. Olha. Não sei como dizer, o senhor não me conhece, mas estou precisando de seus serviços.

Alegre, o pai acenou para a família que continuava jantando.

- Faço tudo, respondeu o pai.

- Tudo?

- Tudo e um pouco mais, assegurou. Sou pau para toda obra.

- O senhor poderia vir a minha casa amanhã à tarde?

Pegou o endereço, o ponto de referência, o horário. Ao desligar o telefone, a amiga da sorveteira:

- Bem que disseste. Ouviste o que ele falou? Faz de tudo. Pau pra toda obra!

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 27 de novembro de 2008.