Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no serviço, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava .

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixasses mágoas, porque não permitisses desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa. Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo, rindo sem cessar, do meu medo absurdo das acrobacias que fazias. Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver. Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.