Era uma outra época, quando ainda havia galos e quintais. Ganhei uma bicicleta.
Eu era desajeitado e não conseguia manejar aquele perigosíssimo veículo. E lá ia eu pelo quintal afora atropelando o galo, assustando o cachorro, colidindo com o pé de romã e fazendo a gata arrepiar os pelos no telhado. De tanto me esfolar, meu pai resolveu preservar o que restava da minha integridade física e, mesmo à custa do meu orgulho ferido e apesar do meu veemente protesto silencioso, trocou a bicicleta por uma vitrola.
Mal sabia ele que estava me fazendo ir mais longe do que qualquer bicicleta ou avião poderia me levar. Como a música, talvez só um livro me faça viajar por estradas inexistentes, caminhos imaginários e países inventados. Pensando bem, eu é que não sabia ainda.
Era um aparelho tamanho família, ocupava um bom espaço da nossa sala e tinha um sofisticado sistema que permitia tocar 6 discos por vez caindo um a um sobre o outro e se desligava quando o último disco terminava de tocar. Aí era só virar o pacote de discos e começar tudo de novo. Altíssima tecnologia.
Com essa vitrola, veio também uma grande quantidade de discos de 78 rpm com 2 músicas apenas, uma de cada lado. Esse fantástico acervo tinha bandas marciais! , muitos discos de música caipira e alguns lá perdidos que faziam a minha delícia e que eram, para aquele menino tímido e deslumbrado, o mais longe que poderia fazer voar a imaginação.
Um deles desvendava ( ou acentuava ?) um mistério que eu não conseguia entender muito bem : por que as meninas em algum momento paravam de se interessar por bonecas, pique, amarelinha e mudavam o seu jeito, seu olhar, seu modo de vestir e assumiam um ar totalmente distante de nós, novos estranhos, que ainda queríamos continuar atazanando a vida delas com as nossas brincadeiras estúpidas?
Era "a vida se abrindo num feroz carrossel com o surgimento dos primeiros raios de mulher" como já disse Mutinho. Uma a uma elas infalivelmente entravam sem aviso num mundo novo, onde não havia nenhuma possibilidade de aproximação para moleques descalços como nós.
Com o xóte das meninas, o Rei do Baião encontrou uma forma precisa de descrever esse fenômeno tão impreciso:
Mandacarú quando fulora na seca
É o sinal que a chuva chega no sertão
Toda menina que enjôa da boneca
É sinal de que o amor já chegou no coração...
Meia comprida não quer mais sapato baixo
vestido bem cintado não quer mais vestir timão...
Ela só quer, só pensa em namorar
Ela só quer, só pensa em namorar...
De manhã cedo já tá pintada só vive suspirando
Sonhando acordada
O pai leva ao dotô a filha adoentada
Não come, não estuda, não dorme nem quer nada...
Ela só quer só pensa em namorar
Mas o dotô nem examina chamando o pai de lado
Lhe diz logo em surdina que o mal é da idade
E que prá tal menina não há um só remédio
Em toda medicina...
Eu, sem nem desconfiar, estava sendo apresentado por Luiz Gonzaga e Zé Dantas da forma mais singela ao ciclo da vida ou do amor, o que no fundo é a mesma coisa.
Quanto à excepcional e raríssima habilidade de equilibrar uma bicicleta, minha destreza ainda não chega a tanto.